quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Capitalismo e autoritarismo. O papel de Estado no apoio a ambos

A forma como se encaram as questões em epígrafe determina as diferenças essenciais entre a esquerda e as esquerdinhas, a revolução e a aceitação da (des)ordem estabelecida. Porque a sua clarificação é necessária, entendemos escrever estas linhas.

Índice

1 – Aspectos a clarificar para uma actuação política mais profícua
2 – O carácter desastroso do capitalismo
3 – O autoritarismo na empresa e em casa
4 – O Estado, a base de todo o autoritarismo
4.1 – O surgimento e configuração do moderno Estado-nação
4.2 – O Estado como produtor. O capitalismo de Estado
4.3 – O intervencionismo keynesiano
4.4 - O Estado no contexto do neoliberalismo
A actuação  neoliberal
A estratégia das esquerdas institucionais e as alternativas anti-capitalistas

1 – Aspectos a clarificar para uma actuação política mais profícua

A situação que o capitalismo, particularmente na sua actual versão neoliberal provoca, vem agudizando os graves desmandos a vários níveis:

  • a nível económico, com a subalternização da actividade produtiva face à especulação e à financiarização da economia global;
  • a nível social, com o aumento da insegurança no trabalho, a repressão e o desinteresse pela sobrevivência de enormes faixas de seres humanos;
  • a nível político, com a dicotomia entre governantes corruptos e incapazes e os governados, apesar das loas hipócritas que se vão tecendo sobre a democracia de mercado, cujo conteúdo se vem revelando mais e mais restritivo;
  • a nível ambiental, com os problemas do aumento da temperatura, da desflorestação, da poluição e da redução da biodiversidade.
O pensamento progressista, anti-capitalista e anti-autoritário, apesar dos esforços analíticos de muitos pensadores devotados à libertação da multidão de trabalhadores está hoje, longe de ter conduzido a um enraizamento organizado nas camadas populares, sobretudo, quando comparado com a proliferação de organizações que trabalham para o apuro da gestão capitalista à escala planetária.

Um aspecto em que o capitalismo tem sido particularmente hábil é o do aproveitamento de ideias revolucionárias e progressistas para, através do seu desvirtuamento, gerar a ideia de que se preocupa honestamente com o bem-estar dos trabalhadores e da humanidade em geral. Para esse desvirtuamento contribuem decisivamente os aparelhos ideológicos, com relevo para os media; e a cooptação aos seus objectivos estratégicos ou a domesticação de forças políticas e sociais de origem popular ou revolucionária, destacando-se neste contexto, partidos socialistas e comunistas, bem como a maioria dos sindicatos.

O processo histórico tem, no entanto, mantido intacta - ainda que com uma influência minoritária junto da multidão de trabalhadores, sobretudo no capítulo organizativo - as virtualidades profundas do pensamento libertário. Vamos aqui cingirmo-nos a dois aspectos essenciais:

  • A recusa frontal e radical do capitalismo como sistema global de gestão da Humanidade, nomeadamente a apropriação privada dos meios de produção, do produto do trabalho, da própria vida humana;
  • A não aceitação do autoritarismo sob as suas várias formas, mormente através do aparelho do Estado, nos locais de trabalho e no âmbito familiar (patriarcalismo);
Há ainda um aspecto, o da afirmação da democracia directa e da responsabilização a todo o momento dos representantes para com os representados que trataremos oportunamente.

2 – O carácter desastroso do capitalismo

O capitalismo é, do ponto de vista da gestão económica um verdadeiro desastre. Apesar dos meios técnicos e tecnológicos de hoje permitirem a vida condigna a 12 mil milhões de seres humanos, o capitalismo está longe de assegurar o bem-estar à grande maioria dos actuais 6 mil milhões. A cupidez inerente aos capitalistas gera um subinvestimento em áreas tão importantes para a vida humana como a saúde, a habitação ou o ambiente; e a acumulação de rendimentos e riqueza nas mãos dos capitalistas trava o consumo da multidão e condena o sistema a baixas taxas de crescimento económico. Essa cupidez do capitalismo vem, irresponsavelmente, reduzindo a biodiversidade e degradando o ambiente tornando o Homem como o único ser vivo que destrói o seu próprio habitat.

A acumulação capitalista causa profundas desigualdades regionais e sociais irracionalizando a distribuição do Homem pelo planeta, tornando improdutivas enormes extensões de recursos sob o primado da competitividade e do mercado, tornando o comércio (e não a produção) como o elemento virtuoso da actividade económica, apesar dos enormes custos de transporte.

Dessas desigualdades resultam conflitos e guerras um pouco por toda a parte, para além da insegurança e do banditismo de vários matizes. Esses elementos alimentam, não só a economia do crime mas, também as multinacionais e o sistema financeiro que constituem a tríade de elementos essenciais da acumulação capitalista.

A cega procura do lucro constitui um entrave ao desenvolvimento tecnológico com o adiamento da entrada em produção de descobertas essenciais para a melhoria das condições de vida das pessoas, ou um real acesso a medicamentos, por exemplo.

Inversamente, a introdução de alimentos geneticamente modificados é objecto de uma enorme pressão sem que se conheçam os seus efeitos a longo prazo, quer sobre os organismos humanos e animais, quer da contaminação da flora natural. Lembramos que a BSE resultou da espantosa tentativa de tornar os bovinos animais carnívoros, para aumentar o ritmo de crescimento da produção de carne ou leite. A recente tentativa do governo sul-coreano de introduzir carne suspeita proveniente dos EUA tem provocado fortes reacções populares e revela a íntima relação entre Estados e empresas.

O mal-estar social, o desemprego, os preços da habitação, a precariedade, a pobreza produzem um consumo enorme de anti-depressivos, ansiolíticos e afins, formas de obstar, de modo lucrativo para as multinacionais, ao mal-estar psicológico de milhões de pessoas.

A pressão desapiedada sobre as condições de vida da grande maioria dos seres humanos configura, cada vez de modo mais evidente, o carácter de genocídio levado a cabo pelo capitalismo.

Posto isto, a luta anti-capitalista não é apenas uma questão de aumentos salariais acima da taxa de inflação, ou da idade da reforma, ou das leis que configuram os despedimentos ou o funcionamento da justiça. Tudo isso está marcado pela existência do capitalismo como sistema dominante de gestão da humanidade e, portanto todas as lutas são parciais e necessariamente integráveis no combate pela destruição do capitalismo. É uma questão de sobrevivência para a Humanidade.

Sendo a luta pela melhoria das condições económicas a realidade mais imediatamente perceptível ela deve ser enquadrada numa perspectiva mais alargada e, sobretudo, enquadrá-la num quadro não somente de defensiva mas de ofensiva, com iniciativas constantes e até audaciosas que afectem o funcionamento do sistema global capitalista. Quer com o reforço das acções conjuntas entre trabalhadores de vários países, quer prejudicando objectivamente o funcionamento do sistema com acções localizadas na infra-estrutura mais frágil do capitalismo, como as vias de transporte, as comunicações, a distribuição de energia, como no conhecido caso do “businão” de 1994, na ponte 25 de Abril ou, mais recentemente, pela luta coordenada dos camionistas ou dos pescadores do sul da Europa.

3 – O autoritarismo na empresa e em casa

O autoritarismo é uma característica cultural inerente às sociedades baseadas na propriedade privada dos meios de produção e do produto do trabalho. Ele revela-se através da hierarquização não democrática das relações sociais insinuando-se, como cultura, nos hábitos sociais e, portanto, na sua aceitação como facto inelutável, próprio da vida social. Como característica cultural, o autoritarismo não dispensa, contudo, o apoio dos sistemas coactivos, da lei, dos regulamentos e regras disciplinares como superestrutura formal de legitimar o poder de alguns sobre muitos.

O autoritarismo ao nível da empresa baseia-se no direito a que o patrão se arroga de decidir sobre o processo produtivo, as condições de trabalho e remuneratórias dos assalariados (hoje chamados cinicamente de colaboradores), os investimentos e a distribuição da riqueza criada. Essa autoridade absoluta contradiz o carácter social da produção, sobretudo nos tempos de hoje, em que as qualificações tendem a ser elevadas, permitindo, objectivamente, ao colectivo dos trabalhadores da empresa dispensar o capitalista, o detentor do poder e gerir a empresa numa perspectiva de colectividade e não do poder de alguns sobre a maioria. Tornando-se o processo produtivo muito complexo, só o saber conjunto dos trabalhadores pode gerir adequadamente a empresa, resultando o poder do capitalista como de um elemento de ordem política (a lei) e não de uma real necessidade do próprio processo produtivo.

A interligação entre as funções dos diversos trabalhadores, a sua interdependência, o seu domínio colectivo das técnicas de produção e de gestão comercial e financeira, concretas permite, por conseguinte uma gestão democrática da produção da riqueza, sem um poder autoritário, despótico e parasitário do capitalista. Há, pois que incutir nos trabalhadores a consciência da sua força colectiva e da sua capacidade conjunta de gerir as empresas, em seu próprio proveito, como seres humanos.

Outra forma típica e enraizada de autoritarismo é a concepção patriarcal das unidades familiares, baseada na aceitação da predominância do homem sobre a mulher, considerada poucos séculos atrás, no ocidente como um homem incompleto, desprovida de “alma”, gerada a partir de uma costela do homem. Como é evidente, nas sociedades ocidentais, o patriarcalismo está em acentuada crise pela generalização do papel da mulher na angariação de rendimento familiar através do trabalho remunerado e, pela maior liberdade de realização sexual, em parte derivada da vulgarização da pílula anti-conceptiva.

Contudo, o patriarcalismo ainda apresenta grande vitalidade como demonstrado pelas diferenças salariais entre homens e mulheres para funções idênticas, pela predominância de homens em posições de chefia e direcção, no maior desemprego feminino ou na violência doméstica. Não se pode deixar de referir o cinismo dos sistemas de quotas nos cargos políticos adoptado por muitos partidos ditos socialistas ou da esquerda institucional, convencidos que desse modo dão um exemplo a seguir nas empresas e nos lares. Ocultam uma das características do capitalismo que é a segmentação dos trabalhadores em várias categorias (sexo, raça, imigrantes com ou sem papéis…) para estabelecer diversos níveis salariais e assim estabelecer pressão para uma baixa dos níveis salariais.

4 – O Estado, a base de todo o autoritarismo

4.1 – O surgimento e configuração do moderno estado-nação

A expressão mais complexa de autoritarismo é a presença do Estado, com as formas de actuação que lhe são inerentes.

Na sua génese, o Estado, ancorado numa figura despótica com atributos divinos, servia para estabelecer e garantir as regras de obediência e exploração da maioria, para benefício dos detentores da terra que para o efeito criaram uma burocracia e um mandarinato, agrupados em torno da tal figura despótica, ungida pelos deuses. No período feudal, a instituição de um suserano com poderes limitados, género de “primus inter pares” revelava também a interligação hierarquizada entre o conjunto dos senhores da terra; e, por seu turno, as mudanças dinásticas revelavam as suas lutas internas para a manutenção de uma certa (des)ordem social.

Como essas regras, no seu conjunto, nunca foram, em qualquer época, propriamente favoráveis aos trabalhadores tornou-se necessário forçar a sua legitimação com o uso da força, desenvolvendo-se, para o efeito, exércitos, guardas pretorianas, prisões, execuções, polícias e tribunais. Isso, em complemento do papel da religião e, muito mais tarde, da escola e dos media na homogeneização e domesticação das mentes.

A mundialização da economia, a partir do século XVI, com a rapina de terras e a escravização em massa de pessoas, constituiu a força impulsionadora do capitalismo como sistema dominante. O alargamento da área de actuação e o enorme crescimento da actividade económica daí resultante obrigaram a uma certa cartelização dos senhores de um dado espaço geográfico, umas vezes unidos por uma língua e cultura comuns, outras nem tanto; dessa cartelização nasceram, o moderno estado-nação e o patriotismo.

Os estados-nação constituíram-se de facto, em prisões de povos e trabalhadores, numa escala bem mais alargada do que a vigente para os servos da gleba do passado então recente. Estabeleceram-se fronteiras e arregimentaram-se exércitos para as defender tornando-se a guerra forma comum de aumentar a riqueza. Assim, cada cartel, isto é, cada burguesia, procurava assenhorear-se em exclusivo dos seus trabalhadores, como reserva de mão-de-obra, dando uma designação de estado-nação à sua coutada.

Por seu turno, o nacionalismo tornou-se a ideologia da introdução de um sentido de pertença a esse espaço alargado, tornando-se o patriotismo culto obrigatório do estado-nação, forma criativa de dividir os povos e os trabalhadores entre si, de os fazer enfileirar ao lado e em benefício dos “seus” senhores e dos “seus” capitalistas sob os auspícios do que se costuma chamar, interesse nacional. Cada estado-nação tinha, portanto o seu rei, bastas vezes divinizado ou erigido em autoridade absoluta; a sua lei e a força repressiva necessária para a fazer valer; o seu exército; e, tendencialmente, a sua religião e a sua língua dominante. Tudo isso à sombra de um símbolo sob a forma de trapo agitado pelo vento, a bandeira nacional.

Esta unidade nacional de interesses dissonantes e antagónicos entre trabalhadores e camadas possidentes, mormente a burguesia, foi, desde o princípio uma verdadeiro embuste para dividir a esmagadora maioria das pessoas, miseráveis e maltratadas, contra os seus vizinhos do outro lado da fronteira, com igual condição. Note-se, no mapa político de hoje, a arbitrariedade das fronteiras que, de facto, nada dividem geograficamente de distinto, abarcando frequentemente comunidades de culturas diversas sob uma mesma nacionalidade; com os conflitos e guerras que se conhecem.

O domínio total da burguesia ou do espírito capitalista com Cromwell e na Holanda (século XVII) e, mais tarde, a criação dos Estados Unidos da América e a Revolução Francesa (século XVIII) criou as bases para um aumento da intervenção estatal, para além da defesa, da polícia, dos tribunais e dos assuntos externos. É o domínio da intervenção dos aparelhos dos Estados na conquista de mercados coloniais, de apoio à navegação comercial e à pirataria, do alargamento do sistema educativo para fazer face às novas necessidades do processo produtivo.

Ideologicamente a economia política constitui-se como ramo autónomo, derivado da filosofia, articulando um enorme lastro do puritanismo protestante com os interesses comerciais da burguesia inglesa; mas, facilmente adoptada pelas restantes. Com a criação dessa ciência originariamente marcada por uma classe social em ascensão, erguem-se como verdades científicas, autênticas panaceias, os mitos do equilíbrio natural entre produção e consumo, da concorrência como virtude, da especialização competitiva, das vantagens da concentração da poupança social em alguns (investidores) em detrimento das condições de vida de muitos (trabalhadores), das compensações do trabalho árduo como fonte de riqueza para os mais esforçados. Este último ponto, ainda hoje muito presente no imaginário americano, mais se assemelha a um conto de fadas pois, o trabalho árduo raras vezes permite sair da mediania ou, quando conduz à riqueza, apresenta demasiadas vezes roubos e fraudes pelo meio.

A partir do final do século XIX, o desenvolvimento tecnológico e a maior complexidade do ambiente social, tornam necessária a escola, entendida como elemento de maciça preparação para as tarefas inerentes à produção ou para a formação de quadros administrativos e políticos destinados ao aparelho estatal. Tal como o serviço militar, a escola passou também a servir como elemento de reforço da coesão nacional, de enquadramento patriótico, com a glorificação ou invenção dos heróis, o amesquinhamento dos estados e povos concorrentes. E, a sublinhar da importância de um Estado forte, colocado acima dos cidadãos, como ente com interesses próprios (o interesse nacional) a sobrepor ao dos indivíduos e, “obviamente” neutro no que respeita aos conflitos entre a burguesia e as classes populares, nas disputas entre ricos e pobres.

Pela mesma época, finais do século XIX, nos países de capitalismo avançado, começa a levantar-se a necessidade de sistemas extensivos de saúde e segurança social, para além do quadro limitado das instituições religiosas e de caridade. Até então, o campo, a emigração e a escravatura foram fontes inesgotáveis de mão de obra para o trabalho industrial e nas cidades, pelo que o investimento na saúde dos trabalhadores seria excessivo e dispensável. A organização autónoma e combatividade do proletariado, a maior complexidade do processo produtivo, das tecnologias, o abandono da escravatura nas metrópoles imperialistas, obrigaram o capitalismo a propiciar melhores condições de vida para os trabalhadores das metrópoles, porquanto nas colónias europeias, o trabalho forçado e a brutalidade eram a regra.

A educação e a saúde, como necessidades transversais aos sectores mais dinâmicos e modernos da produção capitalista, assentavam que nem uma luva nas funções estatais, acrescentando-se, portanto, às atribuições tradicionais dos aparelhos, gerando mais elos na ligação entre as funções estatais e as necessidades do capital.

4.2 – O Estado como produtor. O capitalismo de Estado

A rápida degenerescência da revolução russa de 1917 significou a adulteração da produção colectiva e iniciou a assunção directa pelo Estado da actividade produtiva propriamente dita, inaugurando-se assim o capitalismo de Estado. Na ausência (histórica ou por esmagamento) de uma burguesia clássica, o capitalismo de Estado passou a ser o recurso para uma acumulação acelerada levada a cabo por uma minoria de eleitos, corruptos erigidos em vanguarda, tornando-se as massas trabalhadoras objecto de uma exploração acrescida, por vezes sob a forma de “emulação socialista”, batalhas de produção e cuja resistência significava uma repressão brutal ou mesmo a morte.

O Estado passou a estar omnipresente na organização económica, na detenção dos recursos, para além da saúde, na educação, na defesa e repressão, as funções tradicionais. As funções policiais e de propaganda ganharam um papel de uma dimensão nunca vista, sem se perder de modo algum o culto da pátria, antes pelo contrário. No capitalismo de Estado, o líder é o Grande Irmão, o pai dos povos, figura que Stalin herdou do czar; e, como pai tradicional é austero, severo e distante. O rei-sol Luís XIV ao dizer “L’Etat c’est moi” não podia imaginar o poder que um líder de um capitalismo de Estado poderia ter sobre a sociedade.

O surgimento dos fascismos italiano e alemão não se baseou na estatização da propriedade capitalista mas, na coordenação subordinada do capital privada aos desígnios nacionais, assentes numa mística nacionalista e imperial. O Estado, polarizado no seu líder, um duce, ou um fuhrer, erigia-se em determinante único da vida política e económica e, como sempre convém nestas situações, dando um papel de relevo à actuação das forças repressivas e de delação, através de partidos de massas e da utilização extensiva de novas tecnologias (a rádio e o cinema) para a propaganda.

O modelo do capitalismo de Estado não se confinou às degenerescências conhecidas por “Estados socialistas” ou aos fascismos tradicionais. Veio a ser adoptado, com naturais particularidades em países neocoloniais nas décadas de 50 a 70, com resultados económicos relevantes na Coreia do Sul, Taiwan ou Singapura mas, menos conseguidos na África ou na América Latina.

O esforço de guerra quer para os países fascistas como para as chamadas democracias ocidentais reforçou em muito o papel do Estado na actividade económica; como produtor directo de armamento ou como adjudicatário de encomendas ao sector privado, como aconteceu na Inglaterra, nos EUA ou na Alemanha.

4.3 – O intervencionismo keynesiano

A dependência do nível da actividade económica das encomendas públicas, iniciado com o New Deal teve o seu seguimento com as encomendas para a guerra e fez os EUA saírem da grande depressão; mais tarde, o plano Marshall foi o seu substituto, promovendo a compra pelos europeus de bens americanos financiados, pelo governo americano. Pela mesma época, Hitler demonstrara como o papel do Estado era essencial como factor de saída da recessão, mesmo que com a guerra no horizonte isso constituísse, de facto, um crescimento económico não consolidado a médio prazo, como se diria hoje.

Esta intervenção do Estado na economia, revelou claramente, as insuficiências da “mão invisível”, do mercado, já não somente para dotar a multidão de trabalhadores de um nível de vida sustentavelmente decente (coisa acessória para os capitalistas) mas, para assegurar um nível de crescimento gerador de boas taxas de lucro.

O período que se seguiu ao findar da guerra de 1939-45 revelou vários aspectos da assunção da imprescindibilidade da intervenção do Estado nacional, numa escala muito elevada.

  • Primeiro, essa assunção foi teórica, ao nível da teoria económica, com Keynes e outros a demonstrar que as finanças públicas não são neutras em relação ao nível da actividade económica; e, que portanto, um deficit até é … virtuoso, coisa que alguns professores universitários lusos ensinaram até enveredarem pelo mandarinato, como Cavaco, Constâncio ou Ferreira Leite;
  • Foram criadas instituições internacionais para controlo da economia mundial (FMI, Banco Mundial, GATT) com uma moeda quase única para as transacções internacionais, o US dólar, a testemunhar a enorme hegemonia americana no chamado mundo ocidental. Essas instituições tornaram-se instâncias controladas pelas multinacionais e foram dotadas de autoridade supranacional, impondo assim, as suas regras aos Estados-nação, mormente aos de pequena e média dimensão quando fragilizados por crises orçamentais, financeiras e sociais. E foram lançadas as sementes do estado plurinacional, com o pioneiro Mercado Comum Europeu, inicialmente restringido ao carvão e ao aço, à energia atómica e ao comércio entre os membros.
  • Ao nível do funcionamento da estrutura produtiva, alguns Estados-nacionais assumiram o controlo directo de sectores básicos da produção (metalurgia pesada, química, energia) e do sistema financeiro; subsidiaram fortemente as grandes empresas privadas; e alargaram os sistemas de saúde, educação e protecção social, mantidos afastados da lógica de mercado. Essa extensa intervenção na área social, aliada a um relativo paralelismo entre os ganhos da produtividade e os níveis salariais constituiu o que se convencionou chamar o modelo ou pacto social-democrata ou modelo social europeu, que hoje quase só sobrevive nos países nórdicos.
A intervenção do Estado, naturalmente, gerindo e propiciando o fornecimento de força de trabalho ao capital, contribuiu decisivamente para uma maior rendabilidade deste. Sucintamente, o Estado-nação assumiu-se como capitalista colectivo, com um papel nivelador, transversal, fornecedor dos capitalistas privados e amenizando os impactos do capitalismo junto dos trabalhadores e da população em geral, num contexto de guerra fria e da ameaça ideológica proveniente do chamado bloco socialista;

  • Disse-se atrás que os Estados-nação surgiram como uma cartelização de vários capitalistas para o controlo dos trabalhadores dentro das suas fronteiras; estes, colectivamente foram, como que objecto de uma OPA pelos capitalistas das redondezas, através da instituição e endogeneização do conceito de pátria. A criação dos Estados plurinacionais manifesta-se através do alargamento territorial, como da homogeneização de regras de funcionamento da economia (desarmamento aduaneiro interno, política agrícola comum no caso do Mercado Comum). Em paralelo, alterações profundas na hierarquização do capital global correspondem ao esforço de reorganização do capital em busca de maior concentração de recursos e um consequente aumento da rendabilidade.
O esforço ideológico que se vem observando para a aceitação de uma “pátria europeia” enquadra-se no esforço de criação de estados plurinacionais, federados mas, com um poder central cada vez mais forte. O papel do BCE, do Tratado chamado de Lisboa, Shengen e as xenófobas leis da emigração evidenciam a construção acelerada de uma área territorial alargada, baseada em instituições cada vez mais distanciadas da multidão de trabalhadores europeus. Como se pode observar, nada há, conceptualmente, hoje, de novo, face à construção dos Estados-nação do século XVIII e XIX para além do enorme alargamento dessa escala inicial e do papel desempenhado pelo Estado.

O aumento da dimensão das empresas, o alargamento do mercado mundial, afrouxados os controlos coloniais (transformados em neocoloniais) constitui outro factor dessa reorganização, que prossegue na agenda do capital, como se vem verificando.

  • Na Ásia (Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Singapura), o capitalismo assentou também numa enorme intervenção do Estado mas, com um conteúdo mais autoritário, adequado ao maior atraso do desenvolvimento económico de partida e protagonizado por uma diligente burocracia estatal. A assunção de um desenvolvimentismo tecnocrático fez-se com a manutenção, em paralelo, do conservadorismo patriarcal na integração das mulheres no trabalho.
O quadro completa-se com a utilização da repressão, o extensivo financiamento público, a limitação de gastos militares assumidos pelos EUA, no quadro da sua suserania regional, o apoio à centralização do capital nacional, salários baixos e estáveis e apoios sociais como, por exemplo, em Singapura, na construção de um extenso plano de construção de habitações. Contrariamente ao que se passou na Europa, na Ásia o desenvolvimento capitalista efectuou-se num quadro estritamente nacional, com fronteiras muito defendidas, por entraves enormes à importação e subsídios à exportação.

A integração da esquerda europeia (com relevo para os partidos socialistas e comunistas como para o grosso do movimento sindical) na construção do modelo atrás sumariamente descrito foi um contributo fundamental para a retoma económica e a renovação da respeitabilidade do capitalismo. Essa aceitação do capitalismo, da falsa neutralidade do Estado, do jogo eleitoral, cristalizou em rotina a actuação daquelas instituições de enquadramento de grandes massas de trabalhadores.

Bem instalada como assessoria do capital, a esquerda europeia nem sequer procedeu à crítica e repúdio do capitalismo de Estado vigente na URSS, considerado até como “estado operário degenerado” pelos impagáveis trotskistas, como que aceitando, com um incómodo benévolo a situação política e social nos países ditos socialistas. Renunciando ao pensamento, não assumindo a iniciativa estratégica, essa esquerda abriu caminho ao vazio ideológico e político a que se assiste, pese embora a efervescência ideológica protagonizada pelo Maio de 1968, pelas lutas em França e Itália ou pela revolução cultural na China, o surgimento da crítica ambientalista, a descolonização e até os episódios seguintes à queda do fascismo português. Essa acção política burocratizante veio a contribuir fortemente para a relativa passividade da multidão face ao desnorte actual do capitalismo global.

Essa esquerda burocrática e conformista espalhou implicitamente a ideia de que essa colaboração entre capital e trabalho seria duradoura (senão eterna) como modelo de repartição dos resultados das empresas, possibilitados pelo elevado crescimento económico, por sua vez, alicerçado na reconstrução do aparelho produtivo e na reorganização do mundo neocolonial. Nesse contexto, a esquerda europeia antecipou Fukuyama aceitando que o capitalismo iria prescindir do aumento do seu poder e da acumulação de capital encontrando-se assim, o fim da História; estariam encontrados o capitalismo bom e os capitalistas de rosto humano e aberta uma via celestial para o bem-estar colectivo. O Estado seria o eterno fiel de uma balança em equilíbrio, acima do capital, com vocação social, arguto defensor de uma lei e de uma ordem que permitiria emprego seguro e automóvel à porta.

4.4 - O Estado no contexto do neoliberalismo

A reconstrução das destruições da guerra e a subsequente reorganização da economia mundial permitiu a existência de bons negócios e elevadas taxas de crescimento económico e de lucro até ao princípio da década de 70 do último século. Esse crescimento económico permitiu, como atrás se disse, uma lógica de alguma redistribuição a favor dos trabalhadores dos países ocidentais, da qual se encarregava o Estado. A lógica mercantil assente na troca desigual, na política da canhoneira (militar ou financeira) face aos países neocoloniais definia, claramente, quem eram os excluídos desse processo de crescimento. A energia barata constituía a cereja no cimo do bolo da relativa harmonia universal do capital.

A actuação  neoliberal

A redução das taxas de crescimento obrigou o capitalismo a rever a sua estratégia, para continuar a assegurar lucros vultuosos, cada vez mais difíceis de conseguir. As principais formas de o tentar foram:

  • o assalto aos bens e recursos do Estado, tornado mero regulador passivo do funcionamento do “mercado”;
  • as deslocalizações da actividade produtiva e a financiarização da economia;
  • a pressão para a precarização e desvalorização do trabalho, o abandono do objectivo do pleno emprego, o desmantelamento de qualquer veleidade de Estado social.

O gasto público passou a ser o responsável pela inflação e a exigir medidas de fundo como o alijar das responsabilidades de gestão nas empresas, para o qual a “iniciativa privada” estava axiomaticamente mais bem dotada. Abre-se a época do desmantelamento dos sectores públicos empresariais, da abertura de sectores tradicionalmente públicos ao capital privado, da redução de gastos sociais. O objectivo é a total domesticação do Estado pelo capital, com o abandono de todas as funções que possam ser fonte de lucro privado ou concorrer com os (prioritários) apoios ao sector privado.

Procede-se a uma extensa segmentação das fases de produção deslocando-se muitas dessas fases para locais de baixos salários, baixas exigências quanto a condições de trabalho e de deficit democrático, para assim se embaratecer o custo final da produção e acrescer as margens de lucro. Nesse contexto, o impacto ambiental resultante do enorme crescimento do aparelho logístico e de transporte foi completamente negligenciado. E a mobilidade do capital torna os países e os Estados protagonistas de ofertas enormes de pacotes fiscais, terrenos e infra-estruturas para captarem o “investimento externo” das multinacionais.

Acelera-se o desenvolvimento da especulação dirigida a títulos e moedas, em busca de lucros rápidos e fáceis, desviando-se assim capitais dos sectores produtivos para a bolsa, para as operações de titularização, para a participação em fundos e fundos de fundos, com a aposta irracional na crença do crescimento das cotações e da realização futura de lucros, muito para além do possibilitado pela evolução real da actividade económica.

Para essa actividade parasitária concorrem lucros dos potentados da energia, o dinheiro dos fundos de pensões e o capital mafioso, num volume astronómico e de mobilidade extrema. Essa mobilidade é a causa primária do aumento corrente do preço do petróleo e dos bens alimentares, tornados instrumentos de especulação, com preços inflacionados para garantir a desejada rendabilidade aos fundos e ao sistema financeiro em geral.

A financiarização da economia torna a produção de bens e serviços concretos menos interessante do ponto de vista do capital e a determinação dos lucros deixa de ter qualquer relação com a chamada economia real. Abre-se a época das fusões e aquisições seguidas de “downsizings” agressivos e anti-sociais em que os trabalhadores são as grandes vítimas.

Ideologicamente, procede-se à deificação do lucro, do mercado, da “mão invisível” que dispensa a intervenção do Estado, da concorrência e da empresa. Os empresários são objecto de todas as atenções, facilidades e venerações enquanto o trabalho quase é criminalizado e os trabalhadores se tornam sinónimos de custo e desperdício. Vive-se o tempo de panaceias como o empreendorismo ou as ciências empresariais

Ao Estado cabe apenas a criação de condições externas para a frutificação do capital. Hayek e Friedman serviram de arautos teóricos desta ideologia, rapidamente gerando escola entre gestores globais ou de pacotilha e mandarins em trânsito para a administração de grupos económicos ou financeiros, únicos beneficiários da aplicação dessa nova patrística.

O Chile de Pinochet tornou-se o primeiro laboratório de ensaio dessas novas teses, (na realidade postulados de uma velha teologia) aplicadas diligentemente por Thatcher e Reagan, até se tornarem como que uma imagem de marca do mandarinato. A redução do peso do Estado, a abertura dos mercados, as contenções salariais e o esmagamento do bem-estar social dos povos (muitas vezes, já muito parco) tornou-se a cartilha do FMI durante décadas enquanto a OMC impõe o comércio livre e olha para o lado face aos subsídios agrícolas e outros proteccionismos dos países dominantes.
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A integração dos antigos países de capitalismo de Estado no quadro global constituiu uma nova janela, muito temporária, de oportunidades mas, sem alterar o quadro global, de redução das taxas de lucro; o mesmo vem sucedendo com os entusiasmos relativamente aos “booms” do imobiliário, as novas tecnologias ou as chamadas “dotcom” elementos em que se pretendeu alicerçar uma nova era de prosperidade. Curiosamente, é nomeadamente a China com o seu Estado poderoso, a sua imensa população e os seus excedentes comerciais e financeiros que determina o nível global da actividade económica global levantando implicitamente a questão de se saber se o Estado minimalista defendido pelos neoliberais continuará a ser tão virtuoso como apregoado, face aos resultados conseguidos pela China.

No âmbito da paróquia lusa, é sintomático que na actual reestruturação do aparelho de Estado se segmentem os trabalhadores em dois grupos: um, o das funções nucleares – militares, polícias, tribunais e assuntos externos e o das restantes funções. Essa segmentação visa, a médio prazo e, nomeadamente no que respeita aos sectores da saúde e da educação, privatizar ou contratualizar a gestão com empresas privadas, como aliás se acha bem expresso no programa recente de Manuela Ferreira Leite e cujas diferenças face a Sócrates são marginais. As funções de regulação são objecto da criação de institutos públicos com os postos dirigentes bem remunerados, a preencher pelo mandarinato e, em regra, benevolentes com os “regulados” como se tem visto através do papel da Anacom ou da Autoridade da Concorrência relativamente à conduta das petrolíferas.

A estratégia das esquerdas institucionais e as alternativas anti-capitalistas

Perante este quadro devastador a esquerda tradicional, mais ou menos fóssil, utiliza uma linguagem anti-capitalista mas, mantém-se fiel a axiomas sem aderência com a realidade, quando não eivados por um linear reaccionarismo:

  • Acredita num retorno ou na travagem do desmantelamento do Estado social sem curar de observar e, mais grave que isso, querendo fazer acreditar, na possibilidade de ressuscitar um pacto social-democrata entre capital e trabalho;

  • Acredita num Estado interventor em benefício da multidão, desde que ocupado por dirigentes políticos sérios e devotados à causa do povo; parece acreditar no mito rousseauniano da bondade original do Homem ou em parvoíces como as emanadas por um Cavaco qualquer sobre a nomeação de um conselho de sábios virtuosos para gerir a questão do deficit;

  • Aceita placidamente a manutenção de um quadro essencialmente nacional para o desenvolvimento da luta anti-capitalista, instituindo um ente presumidamente unificador que mais parece um fantasma (o Partido das Esquerdas Europeias);

  • Acredita na possibilidade de romper o rotativismo bipartidário em que se consubstancia a alternância política em democracia de mercado e, nas virtudes da infiltração no aparelho estatal como nos media, enquanto repete ano após ano, a via sacra de rituais e manifestações contra um painel de agressões cada vez mais graves contra a multidão;

  • Parece divertir-se no seu seio com uma feroz concorrência pelo controlo de influências partidárias nas organizações de trabalhadores ou populares, infiltrando os seus membros, cooptando os lideres naturais, procurando subordinar as lutas específicas aos calendários eleitorais, ao jogo político institucional, revelando assim uma desconfiança típica face às iniciativas autónomas da multidão;

  • Com tanta fé, a esquerda tradicional, ainda esperará o dia em que a Nossa Senhora de Fátima ditará numa conferência de imprensa o fim do capitalismo?
O capitalismo nesta sua versão neoliberal vem mostrando que também com essa nova roupagem não consegue coadunar as taxas de crescimento com as suas necessidades de aumento da taxa média de lucro. E, simultaneamente, não conseguindo adequar a oferta de bens e serviços às necessidades humanas, vem adoptando uma certa agenda secreta de limitação da procura, impondo restrições e sacrifícios à Humanidade. Essa agenda secreta traduz-se na prática objectiva do genocídio lento e programado deteriorando as condições de vida, a segurança, a saúde da multidão, com relevo para os mais pobres, os velhos, as crianças. Por isso, lutar contra o capitalismo é lutar pela sobrevivência; extirpar o capitalismo é garantir a sobrevivência da vida humana no planeta, para que nos não aconteça o que vem acontecendo a muitas espécies animais e vegetais.

A construção de alternativas é, portanto, necessária.

O grau de qualificação à escala mundial obtido pelos trabalhadores, a complexidade do processo produtivo que obriga à especialização produtiva das funções, a enorme diversidade de bens e serviços, finais ou intermédios, a sua dependência de transacções electrónicas de informação, são factores que evidenciam tanto o carácter social da produção mundial, mandando para o arquivo da História o estado- nação, como a inutilidade do capitalista.

Em cada empresa, o colectivo dos seus trabalhadores sabe, muito objectivamente e com todo o detalhe, as características da produção técnica e da gestão dos recursos, pelo que a presença do capitalista é um desperdício que afecta a rendabilidade e a produtividade da empresa. Torna-se claro que o colectivo dos trabalhadores, organizado democraticamente, constitui a única fonte de legitimidade social e técnica para gerir as empresas.

O que atrás foi referido é totalmente aplicável às necessidades colectivas desempenhadas pelo Estado, podendo os colectivos dos trabalhadores que exercem essas funções proceder ao seu exercício sem a interferência corrupta e bastas vezes incompetente dos mandarins de nomeação governamental ou partidária. O princípio da decisão sobre as necessidades colectivas assentar ao nível dos seus beneficiários é de uma meridiana transparência.

Junho 2008

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