Em tempo de pobreza acrescida, a
sociedade portuguesa acorda para a existência de guetos, em regra escondidos,
sem acesso por autoestrada e de onde fogem os cidadãos comuns, por legítimo
receio ou mero preconceito.
Exemplificamos aqui a situação a
partir da exposição que os ciganos tiveram a propósito dos acontecimentos da
Quinta da Fonte Santa. E para que cada um avalie bem o seu próprio quinhão de
racismo, nem sempre explícito para o próprio.
1 – A diabolização do outro
Desde sempre os ciganos souberam
viver nas margens do sistema formal da economia, integrando-se nela, no
entanto, de acordo com o que lhes é permitido, consoante as suas conveniências
e alicerçando-se num forte espírito comunitário, que lhes serve de escudo,
quando necessário.
O Estado e a sociedade que o
suporta sempre permitiram esse limbo,
porque daí advêm evidentes vantagens, nomeadamente para alguns extratos
sociais, muito minoritários. Quando chegam situações de crise, são os primeiros
a ser perseguidos e Hitler também não lhes
perdoou a diferença; e diferentes continuaram para os Aliados que não
reconheceram em Nuremberga o seu carácter de vítimas do nazismo. Porquê? Porque
não obtiveram, como os judeus, a dignidade que o dinheiro compra, não recolhendo,
por consequência, o reconhecimento ou um estado de Israel plantado em terras
alheias.
O cigano pode ser apontado como a
encarnação do perigo, da violência latente, do “outro”, do diferente, onde
facilmente se descobrem crimes reais ou inventados. Em Portugal,
tradicionalmente, o cigano é o objecto do racismo envergonhado que por vezes
salta à luz do dia, desentranhado com raiva. E, como estamos em era de
globalização, o “mercado” também aqui gerou concorrência; a dos africanos, dos
ucranianos, dos brasileiros, os primeiros acusados de ladrões, os segundos de
mafiosos, as terceiras como desviantes de homens bem casados.
Felizmente... que a Comissão
Europeia está vigilante, decidindo criminalizar a imigração em geral, para
sossego das almas simples e assustadas, que nem se aperceberam que o vigarista
Berlusconi manda o exército contra eles.
Empurrados para fora da
respeitável sociedade dos portugueses de gema, os ciganos vão-se desenrascando
como melhor sabem e podem, com a criatividade a que os pobres são obrigados a
ser capazes. Veja-se como seria mais pobre a música popular europeia se não
existisse a música de influência cigana, com o flamenco, com a sua
predominância nos Balcãs e na Hungria, onde não é fácil de distinguir onde
começa a música “nativa” e acaba a música cigana que até influenciou a própria
música dita clássica (v.g. Haifetz e Kodaly).
O Estado e a sociedade,
interessados na sua perpetuidade como comunidade estranha, como um quisto,
polarizador de procedimentos catárticos, enfia-os em áreas próprias, isoladas
do resto da população, como elementos de um zoo que o turismo ainda não
aproveitou nos circuitos de cidade. E chama a essas áreas, bairros sociais.
Como o Estado e a sociedade não
querem misturas com eles acham por bem juntá-los todos e acrescentar-lhes
magotes de africanos igualmente pobres, para mais pretos, “todos iguais” como
muitos dizem. Precisamente porque a sociedade não lhes quer admitir uma
individualidade cidadã, junta todos, a esmo num mesmo “bairro social”, que toda
a gente sabe ter o anátema de indesejável para as pessoas “normais”. A
sociedade respeitável não lhes admite a dignidade que atribui a cães e gatos
domésticos (de preferência de “raça”), com quem falam, que levam ao veterinário
e metem dentro da cama.
A Câmara de Loures – decerto não
é única neste comportamento de guetização – limita-se a fixar nuns ridículos 4
ou 5 euros a renda das casas do bairro e, nem sequer se importa que os
habitantes não paguem. A Câmara paga, portanto para que “eles” sejam incentivados
a continuar no gueto; paga para perpetuar a discriminação do “outro” e a
aceitação desse facto pelo resto da população; paga para que se mantenham à
margem, distantes, distraidos uns com os outros (africanos e ciganos), para que
se não cruzem com as pessoas respeitáveis.
2 - O mito do RSI
É uma ideia feita junto das
camadas populares, não desmentida pelo mandarinato ou pela superficialidade dos
media, que os ciganos vivem do RSI, que este corresponde a uma pequena fortuna
e que os seus beneficiários vivem como nababos, sem incentivos para trabalhar.
Os factos desmentem esse mito,
pelo menos no que se refere ao valor do subsídio. De acordo com o publicado na
imprensa em Julho último, havia 334 865 pessoas a receber RSI com um encargo
público de um milhão de euros por dia, o que corresponde, se não nos enganamos
a 3 euros diários por pessoa ou 90 euros por mês.
Curiosamente, provoca mais
indignação do que a banca ao arrecadar 8,7 milhões de lucro por dia e que o
Estado atribua aos bancos 700 milhões de euros de benefícios fiscais; ou que no
folhetim BCP haja quem tenha manejado fraudulentamente muitos milhões de euros,
recebendo milhões de reforma e indemnizações sujeitando-se em contrapartida à
dura penalização de não poder exercer cargos num banco durante dez anos. E
aceita-se com bonoma que, em 2007, a sisuda e programadamente ineficaz DGCI
permita a evasão de centenas de mihões de euros em fugas de impostos ou
prescrições de direitos de cobrança.
“A rica teve um menino, a pobre
pariu um moço” diz a canção, interpretando o pensamento dos miseráveis em
relação aos mais pobres e a deferência para com o rico ou o patrão.
A diabolização do “outro” serve
para justificar a mania securitária expressa por um ministro com cara de parvo
que gosta de exibir a sua autoridade citando a lei e o estado de direito,
abrindo bem os sons do seu grasnado para melhor se ouvir. Os ciganos, os
imigrantes ajudam os socratóides a justificar contratos de segurança, aquisição
de equipamento de vigilância, etc; são pois equiparados a custos de promoção de
vendas.
A sequência do ciclo inicia-se
previamente na discriminação, social, no emprego e na habitação. Em que
condições e onde conseguem ciganos ou imigrantes, por exemplo, alugar casas
para não falar em adquirir?
A essa marginalização segue-se a
inscrição no RSI como uma das poucas opções para a obtenção de rendimentos
legais e apoios acessórios, como a utilização do SNS ou o acesso a casas nos
bairros sociais.
Na fase seguinte
há várias opções. A da resignação à miséria dum subsídio estatal; a da
venda de roupas e cópias clandestinas de DVD's nas feiras; ou a integração em
circuitos marginais.
3 - A integração nos circuitos
económicos
Uma breve referência ao
colonialismo português e ao modo como acentuou o subdesenvolvimento em Portugal
e nas suas colónias permitirá elucidar alguns aspectos da relação entre a
sociedade portuguesa respeitável e as comunidades ciganas.
A existência de colónias, com os
seus mercados de consumo ainda que limitados, fidelizados ao abastecimento da
“metrópole” faoreceu no capitalismo português uma aversão ao risco, à
concorrência, ao investimento. Se as colónias eram obrigadas a consumir
têxteis, vinho e bens de consumo produzidos em Portugal porque razão os
capitalistas portugueses iriam investir em qualidade ou sofisticação?
Recordamos que até o transporte era coutada dos bravos armadores portugueses e
por isso, no princípio da década de 80 o governo do bloco central, sem colonias
para administrar, conduziu a marinha mercante ao seu carácter residual de hoje.
Passados mais de 30 anos da
descolonização os bravos capitalistas portugueses passaram a dedicar-se
prioritariamente a actividades fora da concorrência externa; o imobiliário, a
distribuição, as comunicações, Mas, a indústria continua a precisar de escoar
os produtos de menor valia – têxteis lar, por exemplo – roupa de marca
contrafeita ou DVD's piratas para além de produtos defeituosos não exportáveis.
E então, quem melhor poderá
comercializar esses produtos produzidos por respeitáveis industriais lusos?
Quem mais se arrisca a estar nas ruas de olho na polícia, nas chamadas
“Boutique Alcofa” a vender esses produtos? Quem costuma estar presente em
feiras e mercados apregoando camisolas da moda aos passantes? Os ciganos protagonizam assim um negócio P2P à moda
portuguesa, de pobre para pobre.
Este exemplo, evidencia a
complementaridade entre capitalistas portugueses e a comunidade cigana. A
polícia persegue ou faz que persegue os vendedores (nas feiras e nas ruas),
enquanto o poder se distrai de intervir junto dos produtores, conivente óbvio
de uma economia paralela que junta
“empresários”, políticos e funcionários. O mesmo sucede para os DVD's.
Mesmo mediatizando apreensões volumosas para mostrar serviço, a verdade é que o
abastecimento nunca falhou.
As fábricas têxteis que abastecem
este mercado não se situam nos bairros sociais, tal como os locais onde se
produzem os milhares de CD's e DVD's que reproduzem os produtos pimba que estão
na berra. Essas indústrias encontram-se por aí, em locais recônditos,
esquecidos pelos fiscais das finanças, sem anúncios luminosos e geram toda uma
economia paralela de que os ciganos arrecadam a parte menor do lucro e a maior
do risco.
E quanto às drogas? Os barcos que
anunciam com foguetes a chegada à praia com material pertencem a ciganos com
veia marinheira? Os reputados “industriais da noite” que contratam
policias de folga para seguranças, serão
ciganos? Quanto do dinheiro que oleia o imobiliário ou a hotelaria/restauração,
previamente lavado no discreto sistema bancário, resulta do tráfego de drogas?
Todos sabemos que a economia
paralela é florescente e que nela se inclui, ainda mais florescente, a economia
do crime. Sabe-se também, que quanto mais lucrativa é uma actividade, mais
poderosos são os que a ela se dedicam e beneficiam; e, aí encontraremos sem
dúvida, os bancos, muitos dos “empresários” e “investidores”, os partidos do
poder, muitos autarcas, os donos do futebol. Qual a relevância de ciganos ou
africanos neste mundo?
4 – Os preconceitos e a
estupidez na sociedade respeitável
Em todo este contexto, a
sociedade respeitável não pensa demasiado.
Vê, como recentemente, gente a
pagar rendas ridículas e a receber o RSI com plasmas e playstations em casa.
Talvez gostassem mais de os ver nas esquinas, andrajosos, de mão estendida à
caridade pública, pois assim sentir-se-iam mais afastados da indigência. O que
move muitos elementos respeitáveis de pura cepa lusitana é a inveja. Uma inveja
tão pura, tão disfarçavel como um elefante num centro comercial.
Muitos, trabalhadores por conta
de outrém, com o IRS retido pelo patrão, com o salário estagnado e os juros da
casa a subir, ou a aposentação adiada têm, de facto, pouca margem para
arrecadar uns cobres suplementares não tributados pela sanguessuga fiscal. E,
têm dificuldades.
Pagam, porém, o seu preço pela
total submissão a uma cidadania madrasta, a um Estado predador que muito exige
e lhes devolve apenas um NIF gratuito e domicílio no país mais pobre da Europa
ocidental. Custa-lhes ver elementos da comunidade cigana, que consideram de
segunda classe, apenas com as pontes indispensáveis com a economia formal,
viverem sem dificuldades que não o anátema e o risco da sua marginalização, da
sua informalidade. O que não é pouco.
Como convém aos miseráveis,
toleram tanto as golpadas dos ricos e dos corruptos como se sentem roubados
pelos apoios aos pobres ou quando estes melhoram a sua vida. Em todos os casos
um só sentimento: a inveja que consta no decálogo de Moisés e que grangeou
tanto apoio popular nas cruzadas de Hitler contra os judeus. Em Portugal,
Sócrates agradece-lhes, do fundo do coração, a sua distração.
Agosto 2008
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