sábado, 31 de dezembro de 2011


Esquerda, PS e Alegre Confusões e premeditações eleitorais

Alegre, candidato da esquerda?

Francisco Louça reafirmou (1) recentemente o apoio à candidatura de Alegre para Presidente da República, no que foi seguido pelas manifestações de abertura do líder parlamentar do PS, Francisco Assis, naturalmente, como eco de Sócrates. E isso levanta desde logo três questões:

  • Que se saiba os militantes do BE não foram ouvidos sobre o assunto. Embora seja uma questão interna ao BE, os autores destas linhas, não pertencendo embora a nenhum partido, sublinham a importância daquela proclamação para todas as esquerdas portuguesas e que essa relevância vai muito para além de um apoio pontual a Alegre; 
  • Depois, é caso para se perguntar se a eleição de um PR em geral, na putrefacta cleptocracia portuguesa é algo de fundamental para a redução do desemprego e da precariedade ou para o relançamento da luta social;
  • Em terceiro lugar saber se uma eventual eleição de um Alegre para o cargo oferece alguma garantia de constituir um elemento que venha a contribuir para aquele relançamento da luta da multidão, contra Sócrates e o seu governo.

Em Portugal, quase toda a produção legislativa e todas as medidas com impacto social cabem ao governo, sendo limitada a capacidade de intervenção relevante do PR, de acordo aliás, com os desejos de Mário Soares, que decidiu instituir uma figura de PR com pouca possibilidade de intervenção, para prevenir os governos contra um novo Eanes. Portanto, seja quem for o próximo PR a sua actuação a favor da multidão de trabalhadores e ex-trabalhadores é sempre problemática ou pontual.

Por outro lado, há uma tendência na esquerda portuguesa de colocar os ovos todos na mesma cesta; isto é, colocar a contestação ao capitalismo, em todas as suas formas, no limitado e enganador quadro institucional da democracia de mercado em que se vive. Entende-se que o quadro institucional, nas suas várias instâncias – AR, Concertação Social, autarquias – deve ser subordinada à contestação popular, organizada, unida em torno de objectivos concretos, suficientemente desobediente para incomodar o governo e isenta das pretensões hegemónicas dos maníacos do controlo do movimento popular.

Alegre sempre foi um acomodado cacique do PS a quem Sócrates, em 2005, estragou um momento de glória ao preteri-lo a Soares, na pugna com Cavaco. O ressaibo juntou-se ao célebre milhão de votos que terão sido mais motivados por uma lição a Soares e Sócrates, do que pela bem timbrada voz de Alegre. E ambos esses factores – o ressaibo e o milhão de votos - têm sido jogados desde então, com frases enigmáticas, caminhadas titubeantes, sinais antagónicos, almoços “decisivos” com Sócrates e uma ou outra atitude dissonante na AR, mais para se valorizar junto de Sócrates do que como manifestações de um projecto político que não existe, nem pela sua coerência, nem pelo seu carácter de esquerda. Tanto recusa votar na AR o Código do Trabalho, como aparece ao lado de Sócrates na campanha para as legislativas em Coimbra. Junta-se a Louçã e a Carvalho da Silva no Trindade como combateu a eleição de um deputado do BE em Coimbra.

Está claro, desde o princípio desta corte de Louçã a Alegre, que este nunca abandonaria o PS, nem romperia com Sócrates, a despeito de ter mantido durante muito tempo no ar a ideia de criar um partido, não se sabe se enlevado com o brilharete do tal milhão de votos ou se, por mera chantagem sobre Sócrates. E, quem tem ocultado isso, na esquerda, tem cometido um erro enorme, querendo lançar a esquerda a reboque de um cacique e do PS; como que a querer demonstrar que se encontra na Feira da Ladra, um original de Modigliani.

Para ser PR – seu sonho de fim de carreira cinzenta – Alegre sabe que para ganhar a corrida precisa do PS e de Sócrates, como precisa dos votos da esquerda. E, não lhe interessa concorrer apenas apoiado pela esquerda porque isso não lhe traria as chaves de Belém e, uma vez que tendo como desígnio pessoal ser PR, a ideia da unificação da esquerda é um instrumento e nunca um objectivo. Por seu turno, Sócrates, sabendo que Alegre não é consensual no PS e perante uma provável unidade PSD/CDS em torno de Cavaco, pretende arregimentar o povo de esquerda. Para ganhar - rindo-se de uma esquerda bem comportada, bem falante mas, vesga – Sócrates até não se importa nada de aparecer de braço dado, uma ou outra vez, com Louçã e/ou Jerónimo. Paris vale bem uma missa…

Por outro lado, Alegre ao tornar-se um apoio de Sócrates, terá de o justificar muito bem (não se sabe como) para se não desacreditar, nem defraudar os militantes e simpatizantes que nele confiaram o seu voto, contra Sócrates e Cavaco em 2005. Então, no seu início de reinado Sócrates ainda se não revelara no seu empenho criminoso contra os trabalhadores e a generalidade de quantos vivem em Portugal e Alegre não o seguiu, corajosamente. Hoje, quando Sócrates surge totalmente desmascarado como agente do capital é muito interessante, analiticamente, verificar o empenho de Louçã em manifestar o seu apoio a Alegre, como candidato de Sócrates e em explicar porque razão se candidatou em 2005 contra Alegre. Porém, do ponto de vista da esquerda, de quem sofre as agruras da actuação do governo Sócrates, o negócio tem muito menos interesse.

Em suma, se os partidos institucionais de esquerda não apoiaram em Alegre quando este se apresentou a votos contra Cavaco e contra o candidato de Sócrates, fará algum sentido qualquer apoio ao poeta quando este se apresentar como o candidato do PS e de Sócrates? Algo se passa no reino da Dinamarca!

O que pensa o inimigo Sócrates é importante mas, mais ainda, é a medida dos ganhos para a esquerda, dos contributos dessa pugna, da eventual eleição de Alegre, para livrar os trabalhadores e os pobres dos impactos da consolidação orçamental que vai durar anos. Recordam-se aqui os recados do FMI para o efeito e que para a dívida pública voltar a atingir os valores aceitáveis para o FMI e o PEC (cerca de 60% do PIB) é preciso excedentes orçamentais de cerca de uma década; e para o efeito Sócrates ou qualquer facínora no seu lugar terão de aumentar impostos, reduzir pensões, aumentar a idade da reforma mantendo imune … a competitividade das empresas e a rendabilidade dos bancos.

Ora, apoiar Alegre é apoiar Sócrates e validar as malfeitorias que se prefiguram no horizonte próximo a não ser que nos queiram fazer rir às gargalhadas dizendo que um Alegre como PR iria vetar as leis ditadas por Sócrates contra os trabalhadores, os desempregados, os pensionistas, os pobres. Apoiar Sócrates, ainda que indirectamente, através de Alegre é legitimar esse desacreditado carrasco e aldrabão, líder incontestado da direita portuguesa. Que pensarão os votantes da esquerda se forem convidados a votar numa máscara de Sócrates chamada Alegre? Louçã não equacionou estas questões quando soltou o dislate que constitui autêntica fixação no seu cérebro?

Sabe-se da existência de muitos submarinos dentro dos partidos de esquerda e nas suas orlas, ansiosos de uma união de facto com o PS, mesmo com Sócrates, para ganharem lugares bem pagos no aparelho de Estado, na peugada do Pina Moura, do Lino, do Jorge Coelho, ou dessa espécie de Rosenberg português, o Santos Silva. E, para isso, precisam de apresentar trabalho a Sócrates, de satelitizarem os seus próprios partidos em torno do PS e, para o efeito, o apoio a Alegre e as tentativas de arrastamento da massa eleitoral da esquerda é apenas um passo.

Ninguém duvide, porém, que existem muitos militantes dos partidos de esquerda que não votarão em Alegre, se isso lhes for proposto, contribuindo assim para uma clarificação – absolutamente necessária à esquerda – sobre o carácter do PS e dos caciques da esquerda. E se se não prefigurar uma alternativa credível para a esquerda, a abstenção ou a anulação do voto são sempre opções viáveis.

O que é o PS?

O PS é um partido de direita, neoliberal, corrupto, anti-democrático e a insistência dos caciques da esquerda - com a evidente influência na massa dos trabalhadores – nas políticas de direita do PS - sem afirmarem que aquele partido é a principal força eleitoral e política da direita  - é um falso equívoco, é uma consciente conivência com a direita.

Como é possível admitir que uma força política que durante mais de 30 anos aplica, sistematicamente uma política de direita, a favor dos capitalistas e contra os trabalhadores e os pobres é um partido de esquerda transviado, que é preciso trazer à razão? Só porque - e por calculismo, para fomentar a confusão junto da multidão - tem a palavra socialista no seu nome? É que por esse caminho, então o partido nacional-socialista de Hitler também terá sido de esquerda!

Ao tempo da União Soviética também os PC’s defendiam ser aquilo “o” socialismo e ainda hoje, muitos dos seus militantes mais conservadores continuam a não aceitar que na antiga URSS vigorava um capitalismo monopolista de Estado, sem qualquer laivo de democracia, com a manipulação e controlo de toda a sociedade por parte de uma burocracia extensa e corrupta que, qual lepra, penetrava toda a sociedade. Também os trotskistas adoptavam a atitude hilariante de considerarem a URSS um “estado operário degenerado”…

O PS tende a ser um PRI mexicano que, ocupando o Estado garante o apoio da finança e das tropas do van Zeller abrindo-lhes, em contrapartida, o orçamento e a produção legislativa conveniente; que se perfila entre as maiores subserviências europeias aos ditames imperiais dos EUA. E, para mais, tem uma liderança firme (infelizmente), mostra-se unido e credível (para os patrões), beneficiando do facto de o PSD, irmão gémeo menor, carecer de quadros, tanto quanto é rico de papagaios sem cabeça e muita ambição.

Este PS, considerado por André Freire o mais à direita da Europa, nem sequer tem no seu currículo um passado anti-fascista como o PSOE, que lutou contra o franquismo na guerra civil de Espanha. Nem nunca teve, nas suas fileiras alguém com a estatura de um Sandro Pertini, ex-presidente da república italiana, membro do PSI. E, por nos recordarmos de Itália, vem-nos à memória, o carinho e desvelo de Mário Soares com o corrupto Bettino Craxi (chefe do PSI), a quem foi visitar, solícito a Hammamet, onde estava fugido da operação Mãos Limpas.

Recorde-se como, historicamente, o PS sempre se mostrou com posturas de direita.

Como se sabe, Marcelo Caetano, depois de suceder a Salazar, acenou com uma “evolução na continuidade” para o regime salazarista. Para o efeito, procurou uma abertura, cooptando uma parte da oposição “moderada”, - Sá Carneiro, Balsemão e Mota Amaral, entre outros, - como adereços na Assembleia Nacional fascista e, por outro, não molestando Soares e os seus amigos. Interessava-lhe, naturalmente, isolar e manter marginalizada, clandestina e perseguida a esquerda, a soldo de Moscovo ou Pequim, como então dizia.

Os futuros fundadores do PS, capitaneados por Mário Soares decidiram cumprir o papel que lhes era reservado por Caetano. Decidiram concorrer, nas eleições de 1969, à margem da oposição de esquerda procurando a desejada legitimidade, caso tivessem mais votos – o que não ocorreu. E até aceitaram não discutir a guerra colonial, de acordo com as imposições do governo fascista, aceitando ocultar ser a guerra e o colonialismo o principal factor de bloqueio democrático em Portugal, como cinco anos depois se veio a verificar. A partir de 1974, Soares mudou de agulha, pavoneando-se  como o campeão, o obreiro da descolonização, tentando sobrepor-se a Melo Antunes.

Contrariamente ao que sucedia com a oposição de esquerda, Soares beneficiava de prerrogativas únicas fornecidas por Marcelo Caetano. Quando da morte de seu pai, Mário Soares, exilado em Paris, veio a Portugal para as exéquias, sem a intervenção da pide, estranhamente distraida. Noutra ocasião e enquanto a oposição de esquerda sofria os maus tratos da pide e era encerrada em Caxias e Peniche, Soares foi viver um período de desterro dourado em S. Tomé.

Em 1973, Soares e os seus amigos, advogados bem instalados na vida, juntaram-se em Bad Godesberg onde, com o apoio logístico e financeiro do SPD alemão, no poder, constituíram o PS actual. Esse apoio financeiro prosseguiu, durante vários anos, através da Fundação Friederich Ebert que, não só apoiava o partido, como teve um papel decisivo na fundação da UGT, em 1977 fruto da união sagrada PS/PSD.

No período de efervescência social e política que se seguiu ao golpe militar de 25 de Abril, o PS rapidamente se afirmou como o pólo aglutinador de toda a direita portuguesa, autoritária e primariamente anti-comunista, suportados todos que eram todos como fiéis intérpretes dos interesses americanos no estabelecimento da “normalização”. Carlucci - actual face do grupo Carlyle (2) - o embaixador americano de então, da sua janela, deveria sorrir de satisfação ao ouvir nas ruas sair, por entre as bandeiras do PS, gritos de “Partido Socialista, partido marxista”. Posteriormente, assistiu-se a belas demonstrações de democracia no PS, com a golpada de Mário Soares num congresso quase ganho por Manuel Serra ou a expulsão de Carmelinda Pereira e Aires Rodrigues, a quem foi retirado o direito de tendência.

Depois, vieram as intervenções do FMI e a imersão autocrática na UE e no tratado de Lisboa; o desbaratar improdutivo da maioria dos fundos comunitários; as privatizações e o engrandecimento do capitalismo com a reconstituição de grandes grupos privados; várias fórmulas habilidosas de transferência de dinheiros públicos para bolsos privados, como as adjudicações directas; o avanço galopante da corrupção, estimulado através da domesticação do aparelho de justiça; o desvirtuamento dos objectivos iniciais do SNS com um endividamento crescente e que tem como contrapartida, o benefício do baronato médico, das farmacêuticas, das seguradoras, dos bancos; os maus resultados do sistema de educação vocacionado para emitir diplomas e poucos conhecimentos, onde o mais importante parece ser a avaliação fascizante dos professores; o despesismo saloio e impune dos autarcas; a aposta declarada no favorecimento da banca, da especulação imobiliária e da proliferação de obras públicas, aposta essa integrada num nunca assumido modelo de baixos salários e de empobrecimento relativo da esmagadora maioria da população. Pode ainda referir-se a esclavagista lei laboral, o SIADAP igualmente repressivo, ou o código contributivo; o descarado aumento do deficit para financiar uma casta de empresários vigaristas ou incapazes; a participação subserviente nas aventuras militares dos EUA e da Nato ou as compras idiotas de submarinos…

Em toda esta resumida descrição está a marca do PS/PSD, desse partido-Estado, bicéfalo mas, onde se vem acentuando, desde o abandono de Cavaco, a preponderância do PS. O PS/PSD, com maior relevância para o primeiro dos gangs, tem as qualidades de um rei Midas; só que a transformação de tudo onde mete a mão, não é em ouro mas, em merda.

Sem dúvida que esta caracterização, se reflecte o papel do aparelho do PS e da grande maioria dos seus dirigentes actuais e passados, não se coaduna com a larga maioria dos seus apoiantes eleitorais que, atraídos por um abstracto poder socialista, são confundidos com a designação de socialista do gang PS, num género de publicidade enganosa e fraudulenta, sem qualquer correspondência com a realidade.

É típica dos partidos políticos em geral, uma estrutura orgânica hierárquica, vertical e um fulanismo que transforma o líder numa estrela, cujo brilho ofusca a presença dos outros militantes. E, por isso, os descontentes calam-se, gemem, suspiram, esperam e concedem, ou concedem e esperam por melhores dias, numa esperança que, no caso do PS, tem raízes tão fundas que a tornam vã.

Que fazem esses militantes decentes do PS? Não votaram na eleição de Sócrates mas, eles deixou de ser erigido em líder? Transviaram os seus votos para Alegre nas últimas presidenciais mas, será que Sócrates tem tido grandes dificuldades em conviver com Cavaco? Quando apoiaram o BE (nomeadamente) nas recentes legislativas e europeias, evitaram que Sócrates – se necessário com o apoio do PSD – cumpra o essencial da agenda neoliberal? E quanto ao Parlamento Europeu alguém se lembra que estão lá a combativa Ana Gomes, um imbecil de nome Vital Moreira ou a metástase Correia de Campos? Esses militantes podem ter uma alegria íntima com essas perdas de Sócrates mas, o detrito Sócrates não altera a sua rota por causa dessas escaramuças; sabe bem que a sua estratégia não é afectada pelos resultados dessas liturgias eleitorais. Esses militantes, que se mexam ou que saiam de lá pois, caso contrário, ficam comprometidos com a pertença a uma organização bem alicerçada na roubalheira e ficam contagiados no descrédito da agremiação, cada vez mais tida como mafiosa.

Depois da queda do Muro, o capitalismo deixou de cultivar uma social-democracia e o seu modelo de gestão social e política, vocacionado para a contenção do crescimento da esquerda europeia. A concorrência com o outro lado do Muro desapareceu, o neoliberalismo instalou-se e vem exigindo o fim das medidas sociais-democratas (sistemas de saúde, segurança social…), a privatização de empresas e serviços públicos, para expandir os negócios e aumentar a mobilização de fundos públicos para o seu próprio financiamento. Nesse contexto, aos PS’s europeus restavam dois caminhos; embarcavam numa fusão com a direita conservadora ou liberal, ou assumiam eles próprios a agenda neoliberal transladando os seus apoiantes para a “modernidade” como tantas vezes é vomitada por Sócrates, garantindo para os seus quadros, ministérios, cargos de gestão, poder, dinheiro. Não consta que algum partido dito socialista se mantivesse fora da cartilha neoliberal aliás, também absorvida, com o fervor de conversos recentes, pelas “nomenklaturas” dos países do Leste Europeu.


Qual o papel que deve desempenhar uma esquerda?

Ser de esquerda é promover a transformação social profunda, todos os dias, no sentido da igualdade, do exercício universal dos direitos, da construção de solidariedades que arrumem no lixo da História, capitalistas, banqueiros, especuladores, mandarins e seus os aparelhos repressivos, bem como as pátrias com que pretendem dividir e antagonizar os habitantes humanos do planeta.

Acontece que o referido lixo, não se evapora como o éter, sem esforçada e dolorosa intervenção da multidão, por decreto, ou sequer por lei aprovada por uma impossível maioria parlamentar surgida numa qualquer democracia de mercado, difusora do pensamento único orwelliano. Pelo contrário, é preciso lutar arduamente para a remoção daquele lixo e cabe à esquerda ter e promover a consciência dessas dificuldades e explicitar clara e transparentemente que a única forma de promover esse lixo, passa pela unidade da multidão de trabalhadores, explorados e pobres, contra o sistema económico capitalista, as suas formas de domínio político baseado em castas, no vasto complexo ideológico que comporta o consumismo, a resignação, a aceitação passiva das formas de bestialização mediática, o patriarcalismo, o racismo, etc.

Cabe aos militantes de esquerda, não o branqueamento do comportamento da direita, nem o dourar do veneno que aquela exala mas antes, promover a consciência de que à bipolarização económica crescente a que assistimos – entre os capitalistas e a multidão de assalariados mais ou menos precários, de desempregados, de pensionistas e de pobres em geral - deve corresponder uma bipolarização social e política actuante no sentido da desobediência e contestação aos capitalistas, aos seus mandarins, às suas medidas e leis. O epicentro da luta social é o activismo e a organização de base, com actuações de massas ou de grupos e não numa qualquer parlamento, com a multidão a assistir, instalada defronte de um écran a uma oratória que, mesmo quando interessante é, em regra ineficaz.

O carácter doloroso das transformações sociais favoráveis aos trabalhadores, sempre criou dentro da esquerda, activistas com a miragem de um possível acordo com o inimigo, sobretudo se daí lhes surgirem vantagens individuais que os capitalistas estão sempre dispostos a considerar para a cooptação desses activistas e assim dividirem a esquerda. As experiências históricas da procura de acordos à direita, por parte de organizações e militantes de esquerda, têm um longo historial, sobretudo de amargos de boca para quem luta por transformações sociais, à esquerda.

Cunhal construiu, nos anos 60, o conceito de “revolução democrática e nacional” em que o termo “nacional” funcionava como um sublinhado patriótico em detrimento do internacionalismo, enquanto o abandono do “popular” por esse “nacional” pretendia afirmar uma ausência de radicalidade capaz de captar sectores patrióticos da burguesia, descontentes com o fascismo.

O carácter dependente e atrasado da burguesia portuguesa só nas vésperas do 25 de Abril lhe permitiu ver que era possível e necessário viver sem as colónias pelo que o seu nacionalismo convivia bem com o regime fascista e não precisava em nada de alianças à esquerda. Os empolados sectores sociais católicos e democráticos nunca se envolveram particularmente na luta anti-fascista, antes procurando uma evolução lenta do regime através da penetração no seu interior, como foi o caso do grupo de Sá Carneiro, da Sedes ou de Veiga Simão, atraídos pela prometida abertura de Caetano.

Enquanto o PC esgravatava ingloriamente o terreno à procura da tal burguesia democrática que lhe desse o braço para derrubar o fascismo, era essencialmente o movimento estudantil dos anos 60/70, gradualmente dominado por vários grupos marxistas que, muito justamente, colocava o colonialismo e a guerra colonial como a principal contradição do regime fascista,

Como é sabido, foi a luta dos povos coloniais que, desgastando as forças armadas portuguesas e o orçamento do Estado fascista, empurrou aquelas últimas para o golpe de 25 de Abril.

A partir daqui desenharam-se duas tendências:

  • Uma, alicerçada à esquerda, por sua vez distribuída em dois grandes grupos. O da visão institucional, de inserção numa democracia parlamentar do tipo europeu, com segurança social a sério, serviços médicos e educação acessíveis a todos (e que o neoliberalismo veio a mandar para o rol das impossibilidades); e outro, constituído por diversos grupos, distintos e até conflituantes, apostados em vias auto-gestionárias, de poder popular, de rejeição de um poder institucional vocacionalmente contrário aos trabalhadores.
  • A outra tendência era protagonizada pela ligação entre os militares e o PS (depois da recomposição do Conselho da Revolução), com os EUA, a Nato e a CEE por detrás e cujo objectivo era mesmo a tal democracia parlamentar, chegando mesmo o aldrabão Soares a afirmar (1976) que Portugal alcançaria o nível da CEE em… 1980! Quanto à direita mais radical (PSD e CDS), mantinha-se na sombra do PS, dado o seu descrédito popular naquele contexto pré-revolucionário contudo, quase restringido à metade sul do país.
Depois da “normalização” de 25 de Novembro de 2005, o PC inventou um novo mito – o da maioria de esquerda na AR, género de Santo Graal que haveria de ser encontrado…um dia. É uma evidência que essa maioria PS+PC nunca funcionou em termos de governo, porquanto o PS, pelas suas origens, ligações e lideranças, tinha (e tem) uma agenda que não passa pela satisfação das necessidades da multidão, mormente dos trabalhadores. Aliás, na Europa, onde existiram alianças semelhantes (França e Itália) os resultados não foram nada auspiciosos (o PCF passou de 1/5 do eleitorado para 1/25 em 20 anos e na Itália, o PCI deu origem à “la cosa” como diziam os italianos enquanto uma Rifundazioni Comunista se escaqueirou atrelada aos seus aliados, às mãos do Burlãosconi). De facto, a maioria de esquerda – mesmo que sociologicamente exista – não tendo hipóteses de se concretizar em termos de poder político e, sobretudo de prática política, é um logro para manter duradouramente uma massa crítica de apoiantes necessária à viabilização da existência de um corpo de funcionários conservadores e burocratas, quer políticos, quer sindicais.

Sendo a autoria do conceito pertença do PC, o BE não o rejeita, apenas não utilizando o termo para não … pagar direitos de autor ao concorrente.

Parece entretanto, claro, que a movimentação social quer de base, quer no âmbito sindical não tem colocado o poder em contenção, pesem embora algumas manifestações relevantes que não permitem ocultar o seu carácter defensivo, a não integração numa estratégia de contestação e que se vão repetindo, quase ritualmente, com maior ou menor numero de manifestantes. E assim, Sócrates, mesmo derrotado nas eleições, cumpre o essencial da agenda, tendo por detrás o suporte firme do BCE, da Comissão Europeia, do FMI e do patronato luso, sempre a esticar a corda das exigências anti-sociais e esclavagistas pois, nada tendo a perder na sua imagem, deixa o ónus das medidas lesivas para o governo, escondendo-se atrás daquele, a colher os frutos, deliciado.

Apesar do tradicional e longo casamento entre o patronato e o Estado – como é típico do capitalismo e, com maior afecto quando a burguesia é fraca e ignorante - a polarização da luta contra uma coisa temporária e descartável (este ou outro governo) mantém impune e reinante, no terreno, o patronato e o capitalismo, cavalgando o orçamento, preenchido pelos impostos que eles não pagam ou pela dívida de que beneficiam e não contam pagar. Aliás, capitalismo, foi termo que ninguém terá ouvido na última campanha eleitoral na boca da esquerda institucional, sobretudo nos debates televisivos.

O comportamento da esquerda institucional na Câmara de Lisboa permite retirar interessantes ensinamentos.

Eleições para a CM Lisboa (2001/2009)







BE
PCP
PS/PC
PS
PSD
CDS
PSD/ CDS
Roseta
Carmo-na
% votantes
2001
11.877

130.135

131.135
23.584



55,01
2005
22.342
32.254

75.022
119.839
16.723



52,65
2007
13.133
18.251

56.751
30.501
7.156

32.041
19.740
36,71
2009
12.795
22.623

123.372


108.457


53,43

A coligação do PC com Sampaio e João Soares na CML não parece ter trazido ganhos consolidados para o partido; e nem sequer evitou a derrota perante o tonto Santana em 2001 ou face ao gang de Carmona quatro anos depois.

Em 2005, o BE elegeu como vereador um advogado de boas famílias, medíocre e autoritário, sem grande capacidade de se traduzir em mais-valia mas, revelando que não era a população pobre de Lisboa, o segmento populacional escolhido para o crescimento do partido; que para mais, tendo uma postura basicamente eleitoral, não está enraizado na população em termos organizativos. Em 2007, mais do mesmo; só que o BE não previa que o célebre Zé aplicasse o golpe do baú e se assumisse como vassalo do Costa uma vez que a vida na advocacia para um medíocre não está fácil; e, na sua cauda, o BE assinou um acordo com o Costa, o número dois do PS, o principal partido da direita. Finalmente, em 2009, o BE continuou a sofreu um desgaste eleitoral pesado e perdeu o lugar na vereação conquistado em 2005. Por seu turno, o PC perdeu um dos seus dois vereadores.

A direita, mais consistentemente alinhada atrás de António Costa, teve claros méritos: recuperou a contestatária Roseta, sorveu de vez o Zé, teve o apoio dos cabouqueiros renovadores ex-PC que apelaram ao voto útil em Costa e beneficiou ainda do voto útil de quantos tiveram legítimos receios de que Santana voltasse à presidência da Câmara.

Em suma, a direita PS+PSD/CDS tiveram mais de seis vezes os votos da esquerda institucional (PC+BE) num contexto em que quase metade da população se alheou da disputa. Em quatro anos aquela esquerda passou de 54 mil para 35 mil votos, sem variação da taxa de abstenção. Qual a relação entre a realidade sociológica e a crua leitura dos dados eleitorais?

Porém, mais grave que tudo isto, é que não parece ter-se a cidade de Lisboa tornado melhor – prédios abandonados e em ruína, trânsito caótico, transportes rarefeitos e mal planeados, ausência de habitações de preços acessíveis, poluição em níveis elevados, terciarização em geral e de certas zonas em particular, especulação imobiliária florescente, grande parcela de população envelhecida ou pobre…

Conclusão

Aliança com um gang mafioso? A aliança não é com o eleitorado nem sequer com a massa dos militantes com as quais os activistas da esquerda realizam todos os dias convergências nas empresas em processo de despedimentos colectivos ou nas filas nos centros de emprego. Os pretensos negócios eleitorais são com o gang de Sócrates que domina o PS, apesar de o sacripanta apenas ter sido eleito secretário-geral com os votos de um terço dos militantes (26000 em 75000).

Enquanto no seio da esquerda não estiver consensualizado o carácter de direita do PS, existem perigos vários:

  • Há sempre o perigo de demasiados oportunismos dentro da esquerda, dada a proximidade artificialmente gerada com a direcção do PS;
  • Não havendo um trabalho de base, basta Sócrates sair de cena ou o PS passar à oposição, para se ver como serão voláteis os resultados eleitorais nas legislativas recentes, nomeadamente no caso do BE, o principal beneficiário do ódio a Sócrates, com uma organização frágil e militantes mais recentes que o PC.
Francisco Louça poderá, bem melhor utilizar o seu carisma e as suas qualidades noutra direcção que não no sentido da conciliação com o inimigo número um dos trabalhadores (Sócrates) e na hipoteca do apoio e simpatia de que o BE goza junto dos trabalhadores para cozinhar um conluio com Sócrates, encoberto atrás do biombo Alegre. A imagem de Louçã tem ajudado nas legislativas (e só nelas) mas, não dura sempre; não é a melhor maneira de segurar apoios a um partido, polarizar a sua imagem numa pessoa, mesmo que de qualidade intelectual. Para além do mais, é injusto para todos os militantes do BE que dão o seu melhor, confiantes num projecto autónomo de esquerda e que poderá estar em risco.

Será bem mais conveniente, para os tempos mais próximos, mobilizar os trabalhadores para a luta contra o capital e o seu governo.

  • E para já parecem estar a ser criadas condições para uma retoma da luta dos professores contra o controlo biopolítico a instituir pelo governo e contra o desmantelamento da escola pública;
  • Existe uma recusa menos vista, por parte da função pública, contra as avaliações, a perda de direitos, contra a privatização dos serviços ou de algumas funções, contra a precarização e contra a partidarização acelerada das chefias com a criação de dúzias de “institutos públicos”;
  • Existe um descontentamento face ao desmoronar da qualidade dos serviços de saúde e que abrange os trabalhadores e os seus utilizadores que são a maioria da população, nomeadamente dos mais desfavorecidos;

  • Existe um enorme exército de trabalhadores precários a que se juntam os 600000 desempregados, todos eles pouco satisfeitos com esta situação de crise e empobrecimento acelerado;
  • Está lançado o toque da ofensiva patronal com a vontade de impor um horário de 60 horas para os trabalhadores dos supermercados.
Compete à esquerda e às suas instituições proceder à unificação e concertação das reivindicações dos trabalhadores, com o abandono de um quadro de acções pouco incisivas, muito desfasadas umas das outras e, por outro lado, parcelarizadas, sectorizadas. Em termos de luta social um mais um é mais do que dois.

1/1/2010


http://www.scribd.com/group/16730-esquerda-desalinhada

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(1) Em 22/6/2009, Louça já havia dito exactamente o mesmo


(2) Grupo de investidores privados ligado ao aparelho militar industrial americano, ao Partido Republicano e ao clã Bush

(http://resistir.info/varios/carlyle.html)

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