terça-feira, 30 de setembro de 2025

A besta sionista

 

            Os sionistas dizem ao que vêm…


Não é difícil entender por que razão os estados português e sionista se dão bem. Em parte, é a história de ambos os projetos coloniais — tão recente que coexistiram mais de duas décadas — que torna o que têm em comum tão evidente.

Primeiro, o império português foi fundado na mesma lógica que, no século XIX e XX, serviu como princípio fundador para a criação do regime israelita: a ideia de que, do outro lado, a gente indígena que via as suas vidas colonizadas e os seus territórios ocupados era sub-humana — animalesca até. Enquanto que o cronista do reino português Gomes Eanes de Zurara escrevia, em Chronica do descobrimento e conquista de Guiné, no ano de 1453, que as pessoas guineenses raptadas por colonos portugueses eram “bestas”, descrevendo-as como “almas perdidas” e, com isso, justificando a sua escravatura; o ex-ministro da Defesa sionista Yoav Gallant disse, pouco tempo depois do 7 de Outubro, que o seu exército estaria a lutar “contra animais humanos”, justificando o genocídio em curso. Entre uma e outra afirmação passam-se quase 600 anos, mas a ideologia por detrás de ambas é a mesma: a de que as pessoas não-brancas não são humanas; estão, como escreveu Frantz Fanon em Pele Negra, Máscaras Brancas, na “zona do não ser”.

Também ambos os projetos coloniais se agarraram a uma ideia vinda do fanatismo religioso: a de que o povo a quem incumbia levar a cabo tal empresa fazia-o como vassalo da divindade; tinha uma missão — uma “missão civilizadora”. Como povo cristão, escolhido por deus, tinham os colonos portugueses a obrigação de civilizar os povos inferiores que encontrava. “Ensinando-os” a trabalhar, a “comportar-se” e a vestir-se como esperado seria, a ler e a falar a língua “certa”, a professar a religião “correta”; enfim, a vestir uma máscara branca. Como povo judeu, escolhido por deus, têm agora os colonos israelitas a obrigação de fazer o mesmo com os palestinianos, defendem: ou escolhem assimilar-se, esquecendo a sua história e renegando a sua identidade, ou são condenados ao exílio e à morte prematura.

E para aqueles que aceitaram ser assimilados, ambos os estados tinham o mesmo para oferecer: um regime de apartheid. No império português, os sucessivos “estatutos dos indígenas” impunham juras de lealdade ao ocupante, trabalho forçado e direitos menores do que os que tinham as pessoas da cor de pele “certa”. Também o atual império sionista não deixa dúvidas. Numa das leis fundadoras do Estado, lê-se:


1. O Estado de Israel 
a) Israel é a pátria histórica do povo judeu na qual o Estado de Israel foi estabelecido. 
b) O Estado de Israel é o Estado-nação do povo judeu, no qual realiza o seu direito natural, religioso e histórico
à autodeterminação. 
c) A efetivação do direito à autodeterminação nacional no Estado de Israel é exclusiva ao povo judeu. 
[...] 
7. O Estado vê o colonato judaico como um valor nacional e trabalhará para incentivar e promover o seu estabelecimento e desenvolvimento.

 Nos momentos em que se viram a perder o apoio que sempre tiveram, cada vez mais isolados internacionalmente, “orgulhosamente sós”, ambos os impérios escalaram a violência e trataram de denominar quem lhes resistia como “terroristas”. Se Salazar decidiu, “rapidamente e em força”, embarcar numa guerra que acabaria por assassinar dezenas de milhares de pessoas e deixar tantas outras feridas, deslocadas ou dependentes, também Netanyahu assim o fez seis décadas depois. 

E se as semelhanças entre os dois projetos são muitas, é preciso reconhecer também que há, pelo menos, uma diferença significativa: é que, por muito que a linguagem do regime português fosse racista e colonial, nunca ela chegou ao espaço linguístico que os líderes sionistas alcançaram nos últimos dois anos. É verdade que o longuíssimo e sombrio fascismo português deveu-se também à capacidade de Salazar de escolher as palavras certas, de alterar a estratégia de modo a agarrar-se ao poder, de desenhar um estado “tão forte que não necessite de ser violento”.

Por outro lado, os sionistas dizem tudo ao que vêm. Só até janeiro de 2024, o coletivo Law for Palestine listou mais de 500 declarações de incentivo ao genocídio por parte de políticos, militares, jornalistas e influenciadores israelitas. A organização de direitos humanos palestiniana Al-Haq conta, agora, mais de mil. E, ainda assim, parece que se continua a não acreditar nas suas palavras. 

Toda a Gaza será judaica”, disse o ministro do Património, Amichay Eliyahu. 

1 milhão e 700 mil palestinianos devem sair da Faixa de Gaza”, disse a ministra da Ciência e Tecnologia, Gila Gamliel. “O meu plano de migração voluntária é viável e será posto em prática.” 

A Faixa de Gaza deve ser terraplanada, e para todos eles há apenas uma sentença possível, que é a morte”, disse Yitzhak Kroizer, deputado sionista, do partido Otzma Yehudit de Itamar Ben Gvir. 

“Estou, pessoalmente, orgulhoso das ruínas de Gaza e de que todos os bebés, mesmo daqui a 80 anos, vão contar aos seus netos o que os judeus fizeram”, disse May Golan, ministra da Igualdade Social. 

Erradicar Gaza. Nada menos do que isso nos satisfará. Não deixem lá uma única criança. Expulsem todos os que restarem, para que não tenham qualquer hipótese de recuperar”, escreveu Nissim Vaturi, vice-presidente do parlamento israelita.

Estes responsáveis e decisores políticos não descrevem apenas o que querem fazer com Gaza hoje. Falam também das aspirações coloniais de amanhã. 

Moshe Feiglin, líder do partido Zehut, disse: “Cada criança, cada bebé em Gaza é um inimigo. O inimigo não é o Hamas. Precisamos de conquistar Gaza e colonizá-la, e não deixar lá uma única criança de Gaza. Não há outra forma de alcançar a vitória."

O ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, disse: “Nós conquistamos, limpamos e ficamos. No caminho, aniquilamos tudo o que ainda resta. Estamos a destruir Gaza, deixando-a como uma pilha de escombros, uma destruição total sem precedentes. E o mundo ainda não nos impediu.” Mais recentemente, disse ainda: “Já completamos a fase de demolição, que é sempre a primeira etapa da renovação urbana. Agora é preciso construir.” Será, defende ele, “uma oportunidade imobiliária de ouro”.

O ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben Gvir, disse: “Rezamos para que os justos e bondosos soldados do IDF [sigla, em inglês, para as forças armadas israelitas] cumpram a missão, conquistem Gaza e encorajem a emigração voluntária. É o certo, é apropriado, é moral, é verdadeiro.” E disse ainda: “Se mudarmos a nossa mentalidade e compreendermos que esta terra nos pertence, tudo se torna mais simples. Derrubar o regime do Hamas. Primeiro ocupar, depois estabelecer-se, anexar e encorajar a emigração voluntária. Esse é o caminho a seguir.” 

E não param sequer em Gaza. “Querem soberania?”, perguntou ao público israelita numa conferência o ministro Amichay Eliyahu. “Então, gritem! Querem a Judeia e a Samaria [o que o estado de Israel chama à Cisjordânia]? Querem a Síria? Querem o Líbano?”, “Sim!”, respondem. 

O ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, disse: “Nós vamos aplicar a soberania sobre a Cisjordânia, primeiro através de ações no terreno e, posteriormente, por meio de legislação e reconhecimento formal”. Disse ainda que o trabalho da sua vida é o de “impedir qualquer possibilidade de se estabelecer um Estado palestiniano no coração do país [Israel]. O objetivo é mudar o ADN do sistema por muitos e muitos anos. Isto é uma revolução: é assim que se traz um milhão de pessoas para a Judeia e Samaria”. 

O ministro dos Negócios Estrangeiros, Gideon Saar, disse que, se os países europeus estão “tão entusiasmados com a criação de um Estado palestiniano, podem fazê-lo nos seus próprios territórios”. Acrescentou: “É uma ilusão pensar que o futuro da Judeia e Samaria, o berço do povo judeu, será decidido em Paris, Madrid ou Bruxelas. Será decidido apenas em Jerusalém.” 

E o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu disse, ao anunciar a ampliação de um colonato que pretende separar Jerusalém do resto da Cisjordânia: “Dissemos que não seria criado um Estado palestiniano e, de facto, não será criado. [...] Esta decisão vai duplicar a população da cidade de Ma’ale Adumim. Haverá aqui 70 mil pessoas dentro de cinco anos.”

Não só os líderes sionistas sabem perfeitamente o que estão a fazer, como o dizem para que todos saibamos também. É por isso que qualquer pessoa que tenha estado minimamente atenta às suas palavras não pode acreditar que os representantes de estados europeus não o saibam também. É óbvio, hoje, que representantes do Estado e governo portugueses — como o ministro dos Negócios Estrangeiros Paulo Rangel, o presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa e o primeiro-ministro Luís Montenegro — entendem tão bem quanto nós que o genocídio que o Estado sionista leva a cabo na Palestina é, de maneira assumida, a continuação da limpeza étnica de um povo e da estratégia de ampliação colonial que, há mais de 100 anos, temos assistido. 

Perante isto, Paulo Rangel escolhe tomar uma única decisão: a que, de maneira mais subtil, procura garantir que pelo menos fez alguma coisa não fazendo coisa nenhuma. O ministro sabe que o estado israelita não deixará que exista, realmente, um estado palestiniano. Sabe também que o recente reconhecimento deste estado é, na verdade, um ato sionista, de apoio à manutenção do status quo — por isso mesmo, deixou imediatamente claro o seu apoio ao império. E sabe, claro, que este ato não vai, de maneira nenhuma, desafiar a limpeza étnica do povo palestiniano.

Paulo Rangel, Marcelo Rebelo de Sousa e Luís Montenegro são vassalos do projeto imperial sionista. Acreditam, como antes acreditaram os líderes do projeto colonial português, que pessoas brancas são sub-humanas, estão na zona do não ser. Estivessem eles na mesma posição que Netanyahu, tomariam as mesmas decisões. Por isso, ficarão para sempre na história ao deixarem clara uma coisa fundamental: que o estado português de hoje só difere do de há mais de 500 anos pela falta de poder.

ESCUTA COLETIVA 
27 SETEMBRO | 14H
RED ZONE GALLERY | PÓVOA DE SANTA IRIA 

Nesta escuta coletiva, convidamos-te a vires ouvir connosco o episódio Amanhecer em Gaza, construído de textos e testemunhos de antes e durante o genocídio em Gaza, recolhidos pelo livreiro Mahmoud Muna e o jornalista Matthew Teller. Esta sessão de escuta, partilhada e imersiva, com auscultadores, acontece na Red Zone Gallery, uma galeria de arte pública dedicada à Palestina, criada nas ruínas de um espaço abandonado.
 

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