E se as semelhanças entre os dois projetos são
muitas, é preciso reconhecer também que há, pelo menos, uma
diferença significativa: é que, por muito que a linguagem do regime português
fosse racista e colonial, nunca ela chegou ao espaço linguístico
que os líderes sionistas alcançaram nos últimos dois anos. É
verdade que o longuíssimo e sombrio fascismo português deveu-se
também à capacidade de Salazar
de escolher as palavras certas, de alterar a estratégia de modo a
agarrar-se ao poder, de desenhar um estado “tão forte que não
necessite de ser violento”.
Por outro lado, os sionistas dizem tudo ao que vêm. Só até janeiro de 2024, o coletivo
Law for Palestine listou
mais de 500 declarações de incentivo ao genocídio por
parte de políticos, militares, jornalistas e influenciadores
israelitas. A organização de
direitos humanos palestiniana Al-Haq conta, agora,
mais de mil. E, ainda assim, parece que se continua a não acreditar
nas suas palavras.
“Toda
a Gaza será judaica”, disse o
ministro do Património, Amichay Eliyahu.
“1
milhão e 700 mil palestinianos devem sair da Faixa de Gaza”,
disse a
ministra da Ciência e Tecnologia, Gila Gamliel. “O meu plano de
migração voluntária é viável e será posto em prática.”
“A
Faixa de Gaza deve ser terraplanada, e para todos eles há apenas
uma sentença possível, que é a morte”, disse Yitzhak
Kroizer, deputado sionista, do partido Otzma Yehudit de Itamar Ben
Gvir.
“Estou, pessoalmente, orgulhoso das ruínas de Gaza e
de que todos os bebés, mesmo daqui a 80 anos, vão contar aos seus
netos o que os judeus fizeram”, disse May
Golan, ministra da Igualdade Social.
“Erradicar
Gaza. Nada menos do que isso nos satisfará. Não deixem lá uma única
criança. Expulsem todos os que restarem, para que não tenham
qualquer hipótese de recuperar”, escreveu
Nissim Vaturi, vice-presidente do parlamento israelita.
Estes responsáveis e decisores políticos não
descrevem apenas o que querem fazer com Gaza hoje. Falam também das
aspirações
coloniais de amanhã.
Moshe Feiglin, líder do partido Zehut, disse: “Cada criança, cada bebé
em Gaza é um inimigo. O inimigo não é o Hamas. Precisamos de conquistar
Gaza e colonizá-la, e não deixar lá uma única criança de
Gaza. Não há outra forma de alcançar a vitória."
O ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, disse: “Nós
conquistamos, limpamos e ficamos. No caminho, aniquilamos tudo o
que ainda resta. Estamos a destruir Gaza, deixando-a como uma pilha de escombros,
uma destruição total sem precedentes. E o mundo ainda não nos
impediu.” Mais recentemente, disse ainda: “Já completamos a fase de
demolição, que é sempre a primeira etapa da renovação urbana. Agora
é preciso construir.” Será,
defende ele, “uma oportunidade imobiliária de ouro”.
O ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben
Gvir, disse: “Rezamos para
que os justos e bondosos soldados do IDF [sigla, em inglês,
para as forças armadas israelitas] cumpram a missão, conquistem Gaza e
encorajem a emigração voluntária. É o certo, é apropriado, é
moral, é verdadeiro.” E disse ainda:
“Se mudarmos a nossa mentalidade e compreendermos que esta terra
nos pertence, tudo se torna mais simples. Derrubar o regime do
Hamas. Primeiro
ocupar, depois estabelecer-se, anexar e encorajar a emigração
voluntária. Esse é o caminho a seguir.”
E não param sequer em Gaza. “Querem soberania?”, perguntou ao
público israelita numa conferência o ministro Amichay Eliyahu. “Então, gritem! Querem a
Judeia e a Samaria [o que o estado de Israel chama à Cisjordânia]?
Querem a Síria? Querem o Líbano?”, “Sim!”, respondem.
O ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, disse: “Nós
vamos aplicar a soberania sobre a Cisjordânia, primeiro através de
ações no terreno e, posteriormente, por meio de legislação e
reconhecimento formal”. Disse ainda que o trabalho da sua vida é
o de “impedir qualquer possibilidade de se estabelecer um Estado
palestiniano no coração do país [Israel]. O objetivo é mudar o ADN
do sistema por muitos e muitos anos.
Isto é uma revolução: é assim que se traz um milhão de pessoas para
a Judeia e Samaria”.
O ministro dos Negócios Estrangeiros, Gideon Saar, disse que, se
os países europeus estão “tão entusiasmados com a criação de um
Estado palestiniano, podem fazê-lo nos seus próprios territórios”.
Acrescentou: “É uma ilusão pensar que o futuro da Judeia e Samaria,
o berço do povo judeu, será decidido em Paris, Madrid ou Bruxelas.
Será decidido apenas em Jerusalém.”
E o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu disse, ao anunciar a
ampliação de um colonato que pretende separar Jerusalém do resto da
Cisjordânia: “Dissemos que não seria criado um Estado
palestiniano e, de facto, não será criado. [...] Esta decisão vai
duplicar a população da cidade de Ma’ale Adumim. Haverá aqui 70 mil
pessoas dentro de cinco anos.”
Não só os líderes sionistas sabem perfeitamente o
que estão a fazer, como o dizem para que todos saibamos também. É
por isso que qualquer pessoa que tenha estado minimamente atenta às
suas palavras não pode acreditar que os representantes de estados
europeus não o saibam também. É óbvio, hoje, que representantes do Estado e
governo portugueses — como o ministro dos Negócios Estrangeiros
Paulo Rangel, o presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa e o
primeiro-ministro Luís Montenegro — entendem tão bem quanto nós que
o genocídio que o Estado sionista leva a cabo na Palestina é, de
maneira assumida, a continuação da limpeza étnica de um povo e da estratégia de ampliação colonial que, há mais
de 100 anos, temos assistido.
Perante isto, Paulo Rangel escolhe tomar uma única decisão: a que,
de maneira mais subtil, procura garantir que pelo menos fez alguma
coisa não fazendo coisa nenhuma. O ministro sabe que o estado israelita não
deixará que exista, realmente, um estado palestiniano. Sabe
também que o recente reconhecimento deste estado é, na verdade, um ato sionista,
de apoio à manutenção do status quo — por isso mesmo, deixou
imediatamente claro o seu apoio ao império.
E sabe, claro, que este ato não vai, de maneira nenhuma, desafiar a
limpeza étnica do povo palestiniano.
Paulo Rangel,
Marcelo Rebelo de Sousa e Luís Montenegro são vassalos do projeto
imperial sionista. Acreditam, como antes acreditaram os
líderes do projeto colonial português, que pessoas brancas são
sub-humanas, estão na zona do não ser. Estivessem eles na mesma
posição que Netanyahu, tomariam as mesmas decisões. Por isso,
ficarão para sempre na história ao deixarem clara uma coisa
fundamental: que o estado português de hoje só difere do de há mais
de 500 anos pela falta de poder.
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