sábado, 3 de fevereiro de 2018

Os dez anos de crise – ganhadores e perdedores



Dez anos depois, as medidas neoliberais, a única coisa que apresentam é um sistema financeiro frágil e uma nova bolha especulativa em crescimento; e o aumento do consagrado PIB mantém-se anémico baseado em salários baixos e no desempenho chinês. Os keynesianos também não brilham como alternativa.
As classes políticas cumprem as ordens de continuidade da mansidão da plebe, alimentando nacionalismos, xenofobias e, em breve assumidos fascismos; beneficiando da ausência de um pensamento atualizado de esquerda.
Nos EUA, Trump propôs a passagem do orçamento de defesa de $582000 M para $636000 M mas, o Senado achou pouco e aumentou para $696000 M, com as únicas recusas a partirem de Bernie Sanders e quatro democratas. Onde serão as próximas guerras?
O planeta torna-se um local perigoso para se viver. Onde está a alternativa?
Sumário
1 - Quem mantém o sistema financeiro à tona?
2 - Um sistema bloqueado e politicamente sem oposição
3 - A lógica neoliberal dominante
4 - O que diz a escolástica economicista?


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1 - Quem mantém o sistema financeiro à tona? 

Em agosto de 2007 ficou claro que os créditos hipotecários subprime, com taxas de juro inicialmente baixas - lançados como medida de suplantar a crise surgida do afundamento dos dotcom em 2001 e dos atentados de 11 de setembro do mesmo ano - estavam a gerar uma bolha imobiliária que se esfumou quando surgiu, na sua base, um grande número de famílias insolventes. Como esses créditos haviam sido titularizados, isto é, incorporados em sucessivas emissões de títulos, aos seus titulares restavam duas opções: vendê-los com prejuízo ou mantê-los em carteira, sob o risco de um prejuízo superior.


Assim, a recessão não se ancorou numa quebra da procura. À data, o gasto público era crescente na maior parte das economias e até os beneficiários dos subprimes viam os seus salários crescerem e a suscitarem tentações de maior consumo. Porém, ainda em 2006, nos EUA, houve uma queda dos lucros como resultado de uma acumulação excessiva de capital – não havia pão para tanto chouriço, como se diz em Espanha; e, num contexto de baixa rendabilidade, o investimento não tem atrativos, sobrando daí impactos negativos na chamada “economia real”, na procura, no emprego e nos rendimentos. Isso afetou, de imediato, uma larga camada de trabalhadores pobres, a quem havia sido incutida a ideia de que os seus imóveis, em valorização, lhes permitiriam garantir um maior endividamento… carro novo, obras na casa, viagens... A crise financeira que entretanto se havia desencadeado contraiu o crédito, parou projetos de investimento, gerou desemprego e, só então, essa enorme massa de gente, arruinada, reduziu drasticamente o seu consumo.

Como o sistema financeiro é uma amálgama única, sem fronteiras, o contágio aos bancos europeus foi imediato, fazendo ruir também as bolhas imobiliárias europeias, com a paragem de pagamentos aos bancos. Estes, com a acumulação de créditos concedidos sem reembolso, ainda em agosto de 2007, recorreram ao prestimoso BCE, pensando que se tratasse de uma simples crise de liquidez, tivesse inundado o chamado mercado, colocando à disposição dos bancos € 203700 M; o que comparado com os atuais € 30000 M mensais do conta-gotas do Draghi é uma enormidade. Entretanto, nos EUA, o FED absorveu $ 600000 M em títulos em novembro de 2008, $ 750000 em março do ano seguinte, bem como procedeu a uma emissão de $ 300000 M de títulos do Tesouro, para além de colocação de dinheiro no mercado a taxas próximas de 0% em outubro de 2008, a que se seguiram outras ações. O Banco de Inglaterra, por seu turno, iniciou intervenções idênticas em 2009, com £ 165000 M, no ano seguinte adicionados com mais £ 175000 M, para além de outras ações posteriores. 

Apesar de tão valioso esforço, o imobiliário em construção deixou de ter financiamento bancário, os construtores faliram, aumentando o malparado nos bancos e despedindo em massa. Entre os milhões de desempregados e de trabalhadores com salários reduzidos, houve muitos casos de incapacidade de pagamento de prestações da habitação (e de créditos para consumo), daí resultando despejos e grandes incrementos nos gastos públicos e das seguranças sociais em subsídios de desemprego e outros apoios sociais; para além dos destrutivos efeitos psicológicos e na auto-estima dos atingidos. 

Na Europa, os sorumbáticos avatares de Bruxelas ou Frankfurt exigiram… apoios aos infelizes banqueiros[1] e compressão nos gastos sociais, bem como privatizações em massa para combater os… deficits públicos dali resultantes; por um lado, nada desse menu levanta dúvidas a um neoliberal e, por outro, sendo o mesmo claramente anti-social, fica demonstrada à saciedade a quem servem e para que servem as classes políticas.



I  partiti  politici  si  dividono  in  grandi  e  piccoli.  I  grandi  mentono  e  rubano.  I  piccoli  desiderano  soprattutto   di  crescere.

Os partidos políticos dividem-se em grandes e pequenos. Os grandes mentem e roubam. Os pequenos desejam sobretudo, crescer
                                                                      Emanuele de Straznik
 




Também para colmatar os desequilíbrios nas contas, os Estados aumentaram o recurso a emissões de dívida pública, que o capital financeiro rapidamente subscreveu, uma vez que os Estados não vão à falência e aqueles títulos servem de garantia para o recurso dos bancos ao financiamento junto do BCE, no caso da zona euro. Por seu turno, as agências de rating, no seu elevado saber, mostram-se avaros na recomendação dos títulos públicos, o que favorece a exigência de taxas de juro elevadas, como convém ao sistema financeiro em dificuldades; embora não interesse aos Estados… em dificuldades. 

Toda esta utilização dos Estados para transferirem recursos da população para o sistema financeiro e para o capital, em geral, faz parte de uma trama bem urdida que desenvolvemos há pouco tempo[2], em que estão comprometidos os partidos de direita, com vocação governativa, bem como os da dita esquerda que pedem humildemente reestruturações de dívida, como se se estivesse numa relação comercial típica; recusando, portanto, colocar em causa toda a lógica do capital e a punção permanente, em geral exercida sobre os povos, para a captura destes através dos aparelhos de estado. 

Segundo os neoliberais o Estado é culpado de absorver os recursos que faltam aos investidores para fomentarem o relançamento da procura, o que constitui apenas propaganda justificativa das políticas de compressão de gastos sociais e concentração de capitais e rendimentos nos mais ricos. 

Os problemas de dívida não são exclusivos dos países ditos desenvolvidos. Em África, por exemplo, segundo The Jubilee Debt Campaign em finais de 2017 havia 28 países em risco de incumprimento contra 11 com baixo risco, contra 15 e 24, respetivamente em 2013; e há casos em que a dívida é paga através de procedimentos subreptícios, com o aumento dos preços das exportações, aproveitando a grande procura por parte da China quanto a matérias-primas.

2 - Um sistema bloqueado e politicamente sem oposição

As alegrias e as tristezas dos mercados financeiros podem mais formalmente ser apresentadas como no gráfico seguinte, onde se observa o aumento do número e da riqueza dos bilionários… uma vez que milionário passou a ser uma situação … demasiado comum e irrelevante.
                            Fonte: Blog de Michael Roberts
Os chamados investidores dedicam-se essencialmente à reprodução e acumulação de capital improdutivo e é em função disso e da conjuntura do momento que produzem bens ou serviços, contratando assalariados e comprando equipamentos ou, que se dedicam ao jogo da especulação, como é evidente no gráfico que se segue.

Fonte primária:  http://money.visualcapitalist.com/  Cálculo em Out/2017 (1 B = 1000 000 M)

Embora infame, não deixa de ser curioso que os bancos atuem num plano global quando daí retiram benefícios e, quando a crise surge e os activos se esfumam em dívida incobrável e sem valor, exijam a nacionalização dos estragos, transferindo-os para a população, em termos de austeridade, desemprego, cortes em responsabilidades sociais, privatizações (energia, aeroportos, correios, por exemplo, em Portugal), resgates (assunção de prejuízos da banca), nacionalizações, formais ou encobertas (BPN, BES, por exemplo, também em Portugal)[3]; com essas transferências tendo o alto patrocínio das instituições plurinacionais, como o FMI, o BCE, a Comissão Europeia e dos cosméticos parlamentos nacionais. Uma filosofia de roubo, privatização de benefícios, socialização de perdas…

Na zona euro, o crédito malparado encontra-se a um nível mais de 2.5 vezes superior ao observado em 2007; e os países com indicadores mais perigosos são, em fins de 2016, a Grécia (45.9% do crédito total), Chipre (45%), Portugal (19.5%) e Itália (15.3%)[4], valores substancialmente superiores aos dos países da Europa Ocidental e do Norte. Numa zona económica que se pretende integrada e de políticas homogéneas, a solidariedade manifesta-se no rateio das perdas… pelos mais pobres. 

O quadro que se segue mostra sinteticamente elementos sobre uma ilusória saída da crise iniciada em 2008 que, por sua vez, ampliou a quebra de 2001, da bolha tecnológica que muitos consideravam o início da bem-aventurança eterna, do fim da História, após a implosão do “Império do Mal” soviético. Um site na internet era tido, à época, como suficiente para a inclusão numa nova economia com elevados crescimentos nos índices Nasdaq[5]; afinal, esse delírio morreu na infância. Hoje não se fala mais de nova economia mas sim de catadupas de start-ups que, na sua esmagadora maioria, se afogam em bares nas noites de Lisboa, em época de Websummit e de provinciana euforia governamental; com alguns a jantar no… Panteão, sonhando transformar start-ups em unicórnios[6].
Evolução da capitação do PIB ( preços de 2008)


2008
2016
Var. media anual (%)


Alemanha (€)
31719
34982
1,29

Espanha (€)
24275
22291
-1,02

França (€)
31028
31010
-0,01

Grã-Bretanha (£)
25435
25129
-0,15

Holanda (€)
38879
36742
-0,69

Itália
27551
25213
-1,06

Portugal (€)
16942
16550
-0,29

Suiça (Fr S)
78180
80341
0,35

EUA ($)
48330
51646
0,86

Japão (Yen)
4066662
4180205
0,35

                                                       Fonte primária : OCDE  


A propósito do delírio tecnológico, na paróquia lusa exultou-se com a instalação no Porto, da Amazon que é a maior empresa do mundo sendo o seu CEO, Bezos, o mais rico dos humanos. Mas o que faz a Amazon? Recolhe encomendas pela internet – um pouco de tudo – e procura os fornecedores, encaminhando depois o produto para quem o encomendou; com compra paga antecipadamente, claro. Assim, a Amazon, é simultaneamente uma empresa financeira e um retalhista a nível global, de bens que não produz e que entrega à porta do cliente – um grande supermercado, sem lojas. Imaginem-se muitos milhares de pessoas a direcionar as encomendas recebidas e muitas mais na árdua tarefa da logística, que engloba a recepção de grandes quantidades e variedades de encomendas em portos e aeroportos, a sua passagem para armazéns, práticas de grupagem e desgrupagem, o carregamento e a condução de camiões até se chegar à rede de retalho que termina com a entrega direta ao comprador. Para quem trabalha na logística, além da pressão da luta contra o tempo, para evitar penalizações, trata-se de um trabalho penoso (14 h/dia), muito mal pago (€ 1200 brutos por mês, na Alemanha, em 2013) e onde se não está mais do que poucos anos, dado o seu caráter extenuante que pode atingir entregas em 130 locais por dia[7]. Quando se fala de empresas tecnológicas, os media e a classe política emitem sempre a imagem de trabalho criativo e bem pago para quadros altamente qualificados; mas não dizem que esses são sempre uma pequena minoria. Porque será que os governos falam tanto de magníficos investimentos que corresponderão à criação de muitos “postos de trabalho”, ocultando a real qualificação e os baixos salários que auferirá a grande maioria dos precariamente contratados?

Retomando o passo sobre a não saída da crise, observa-se que as medidas neoliberais não conseguem elevar o nível real do fetiche PIB, nem reduzir as desigualdades, nem aumentar a segurança e a tranquilidade em vastas áreas do planeta; e pelo contrário, ao criarem obrigações laborais não pagas (horas extraordinárias, estágios, contrapartidas de trabalho para a concessão de subsídios) se vai vulgarizando um regresso às corveias medievais. Face ao modelo neoliberal é fraca concorrência da escola keynesiana agarrada ao finado tempo dos 30 gloriosos anos. 

No seu conjunto, o neoliberalismo tenta aplicar medidas técnicas para que os “mercados” funcionem e o PIB cresça, no sentido de a mole humana se manter passiva, embebida e embebedada em consumo e dívida. Esse conveniente conservadorismo está bem patente na consigna para Davos-2018, "Criando um futuro compartilhado num mundo fraturado". Os zeladores dessa partilha (os ricos, naturalmente) gostam desse mundo fraturado, cujas fraturas e desigualdades (eles, os capitalistas) reproduzem a cada minuto. Para edulcorar (eternizando) as fraturas, propôs-se em Davos um qualitative easing sugerido como forma de demarcação dos cinzentos banqueiros centrais que praticam o quantitative easing; uma proposta para um mundo “mais verde, mais equitativo, mais respeitador da diversidade e sobretudo da paridade de género”, um politicamente correto que deve encantar a nata das classes políticas e do mundo dos negócios, presentes em Davos.

Por outro lado, o comércio global está longe de criar alegrias e já levanta medidas protecionistas junto da administração Trump, sem formas mais expeditas de evitar a próxima liderança mundial da China - revelada na sessão Davos-2017, onde Xi Jiping foi a estrela - ao assumir-se como o motor da economia global e o grande defensor do clima.

Resta saber se a China evitará a sua própria bolha imobiliária e os altos níveis de dívida detidos, apontados como um rinoceronte cinzento do qual ninguém se deve aproximar; e se o FED e o BCE serão capazes de aguentar a próxima crise do sistema financeiro, uma vez que, segundo Kenneth Rogoff, os bancos centrais “não têm sequer um plano A para lhe fazer face..

                                            Fonte: Blog de Michael Roberts

A nível político, as democracias de mercado são rotinas que não entusiasmam sequer os votantes, perante o ranger de dentes das classes políticas face aos elevados níveis de abstenção; esse modelo de adulterada representação vai gerando pestíferos produtos como os Trumps, Orbáns, Kaczinskys ou o asséptico Macron… O nacionalismo reaparece na sequência do fracasso de políticas de integração, transforma-se em xenofobia perante a chegada de milhões de migrantes fugidos à miséria e à guerra e, tenderá a assumir-se como fascismo, nos tempos mais próximos. Pior e contrariamente a épocas de um passado recente, não há esquerdas com uma compreensão atualizada da realidade, nem projeto ou capacidade mobilizadora, cingindo-se ao encaminhamento das vítimas do neoliberalismo para o rotineiro voto, para uma escolha falseada entre formações mais à direita ou menos à direita. 

3 - A lógica neoliberal dominante

Os neoliberais consideram a crise que se vem arrastando como resultado do atraso dos bancos centrais em baixarem a taxa de juro e aplicarem o quantitative easing (QE) que vem celebrizando Draghi.

Não será bem assim, por duas razões. Uma, dada a continuidade do programa de financiamento dos bancos que o BCE vem cumprindo, há mais de três anos deixando sempre antever que isso não será eterno; e depois, porque o BCE, ainda em 2007, inundou os bancos com uma injeção de dinheiro, como referimos no ponto 1 deste texto. Esse financiamento monetário que vem promovendo taxas de juro baixíssimas e mesmo negativas[8], deveria, teoricamente favorecer o investimento – o que não tem acontecido. Mesmo havendo na UE, em 2016, menos 25% de bancos e menos 14% em activos face a 2008, não se poderá dizer que a concessão de crédito passe por grande euforia.

O BCE tem estado à espera que a inflação suba como prova de “aquecimento” da economia, para então finalizar o quantitative easing; o que parece caricato perante o nº 1 do artº 127 (sobre a política monetária) do Tratado de Lisboa onde se afirma que “O objectivo primordial do Sistema Europeu de Bancos Centrais, adiante designado "SEBC", é a manutenção da estabilidade dos preços”; isto é… contrariar a inflação.

Por outro lado, a última fonte citada refere que os ativos dos fundos de investimento cresceram 160% no período 2008/16, numa reafirmação de que o metier daqueles fundos é a especulação imobiliária e bolsista; nenhum negócio envolvendo a produção de bens ou serviços consegue, durante oito anos, taxas de valorização de 20% por ano. Quando soarem os primeiros indícios de um próximo rebentamento da bolha serão lestos em venderem os seus títulos com o mínimo de perdas, preparando-se, em seguida, para a compra de “galinha gorda por pouco dinheiro”, activos vendidos ao desbarato. Em Portugal, a troika obrigou à venda de empresas e participações estatais; no caso do nacionalizado BPN, o mesmo foi vendido por € 40 M, depois de o Estado ter concentrado as perdas e os dejetos num (seu) veículo ou bad bank chamado Parvaloren. Neste caso, o que foi vendido não foi uma galinha, gorda ou magra mas… as penas.

A função dos reguladores, mormente do BCE, não é evitar o rebentamento da próxima bolha mas adiar ao máximo o momento do rebentamento. É com essa preocupação que o “mercado” e os bancos centrais anseiam que a atividade económica se auto-sustente, que as empresas e as famílias se endividem, alimentando assim as cascatas de títulos, imbrincados uns nos outros, através de mecanismos de titularização. No entanto, o crescimento… não acontece, como se evidenciou atrás; se a China, o grande animador da economia mundial, com o PIB a crescer 6.9% o ano passado, se constipar, onde se irá manifestar a pneumonia? O Trump, à cautela optou pelo aumento das encomendas internas de armamento, como referimos na epígrafe, o que nada tem de tranquilizador.

No capítulo da dívida, os neoliberais, dizem que os governos a devem reduzir para que o crédito não falte para a atividade investidora; e, em complemento, pressionam para a redução dos gastos públicos, nas áreas da saúde, nos salários, na educação, nas pensões (a palavra austeridade, entretanto, saiu de cena). As multinacionais e o sistema financeiro preferem, naturalmente, que o dinheiro dos impostos se destine ao investimento público em infraestruturas nos apoios ao desenvolvimento regional para que o empreendedorismo se possa evidenciar sob a forma de um capitalismo avaro em capitais próprios e sedento de subsídios, incentivos, isenções, avales, perdões e prescrições de dívidas ao Estado e à Segurança Social. E, mesmo na satisfação de necessidades públicas, são suficientemente inventivos para fomentar as parcerias público-privadas, onde serviços públicos são adjudicados a privados (autoestradas e serviços de saúde, educação, serviços ou de transportes), pagos aos “investidores” com alta rendabilidade, assegurada através de transferências de dinheiro dos impostos; malbaratado pela classe política, detentora coletiva da chave do pote. O que seria dos grupos Lusoponte, Brisa, Cuf, Luz-Saúde e da Igreja Católica se terminasse o caudal de fundos públicos de que são destinatários? Essas parcerias são negócios sem risco entre empresas e governos, com gente da classe política dos dois lados da mesa e dinheiro sujo a circular debaixo daquela.

Tudo isto acontece com o sábio aproveitamento da ausência de uma esquerda na Europa, capaz de gerar contestação; e ainda, da cordata presença dos burocratas sindicais numa concertação social com cheiro de corporativismo, um género de trindade, com um pai que governa, uma mãe gestora da casa e um filho, refilão mas obediente. 
Ocultam, claro está, que nesse aumento da dívida pública teve um peso determinante o resgate de bancos ou a absorção do seu malparado. Como se sabe, em Portugal nos casos BPN, BES, Banif e na estatal CGD, segundo o Banco de Portugal, o sistema bancário português perdeu € 50000 M (cerca de 27% do PIB de 2016!); e muita dessa perda foi transferida para o Estado, deduzido no rendimento da população que paga impostos. Também, como é sabido, a Irlanda apresentou, ao ser intervencionada pela troika, um deficit de… 32%, resultado da absorção dos prejuízos do Anglo Irish Bank; e o estado espanhol reestruturou o seu sistema bancário (como referimos em 1.), com o comprometimento do rendimento e das vidas de milhões de desempregados e centenas de milhares de despojados das suas casas. 

4 - O que diz a escolástica economicista[9]?

Olivier Blanchard é um alto quadro do FMI que em maio de 2017 esteve em Portugal a industriar a elite politica e financeira lusa, sobre a doxa neoliberal. Na sua douta opinião o estoiro da bolha financeira em 2007/8, nada teve de inerente ao sistema capitalista mas “foi o resultado da imprudência financeira de uns bancos não regulados” ou do “pânico financeiro[10]; a atitude estouvada de ovelhas ranhosas, um azar, portanto. Eugene Fama, recente laureado com o “nobel” da economia mostra-se mais modesto: “Não sabemos o que causa as recessõese “a teoria económica não é muito boa na hora de explicar as oscilações na actividade económica”. Este tipo de afirmações exemplificam o pensamento petrificado de gente de tal modo integrada no sistema capitalista que não é capaz de o submeter à crítica, parecendo adoptar a posição a-histórica de que o capitalismo é imutável, que tem um caráter cósmico, inscrito nas estrelas.

Um dos cardeais do keynesianismo, Krugman, em maio de 2016, em Portugal, depois de aprovar outras medidas do governo, considerou que “o salário mínimo parece ser mais alto do que o país pode comportar” e "penso que pode ser um travão à economia"... O conjunto daqueles que vivem de uma massa salarial de 44% do PIB global podem, certamente, comportar os modestos aumentos do salário mínimo. Se quem o não pode comportar é uma franca minoria social - o patronato – é porque não é competitivo e deve mudar de vida, para acompanharmos o raciocínio de Krugman, certamente defensor das regras do mercado. Krugman deve pugnar por uma aproximação face aos trabalhadores do Bangla Desh ou do Vietnam, uma vez que os salários pagos em Portugal e na Grécia já se encontram ao nível dos  chineses.

Como, ficámos a saber pelo “nobel” Krugman, ser competitivo exige o sacrifício de uma população pobre e acossada por anos de austeridade e que as multinacionais lhe agradeceriam se houvesse esse nivelamento, à custa dos de baixo. O mesmo Krugman, afinado com o colega neoliberal Fama também aponta, no seu livro sobre a crise “End this Depression Now”, que não há necessidade de explicar a recessão mas de adoptar políticas para sair dela. Muito prático e pouco científico, Krugman, sem o saber, subscreve um dito bem português, “todos ao molho e fé em Deus”; ou, se se preferir, a fé liberal da mão invisível…

Os tecnocratas keynesianos não aprofundam a análise das crises e das limitações da política económica seguida pelas instituições estatais ou plurinacionais porque, como conservadores, não se querem confrontar com o capitalismo na sua esgotada realidade. Refugiam-se em modelos macroeconómicos com centenas de variáveis, na procura de um crescimento harmonioso, com a hipócrita equidade refletida no recente forum de Davos, acima referido (ver ponto 2.). Qualquer ideologia ou religião transporta nos seus genes a recusa de factos e realidades que a ponham em causa… quando não o ostracismo ou a perseguição dos descrentes. Recordamos aqui uma hilariante e desastrada atitude de keynesianos portugueses, defensores de que o governo Passos - o diligente funcionário da troika e grande subscritor de dívida pública - procedesse a uma… auditoria à dívida pública.

Os primeiros economistas, com Adam Smith, Ricardo e Marx à cabeça, tomaram a economia política como uma disciplina de análise da natureza do capitalismo, enquanto sistema económico, social e político. Posteriormente, com Jean-Baptiste Say, os marginalistas, Alfred Marshall e os pesos-pesados do neoliberalismo, a economia abandonou o seu complemento “política” para se transformar em mero cálculo, aplicado a uma realidade desintegrada do tempo histórico; a atitude estúpida, de quem quer adaptar a realidade aos seus preconceitos ideológicos. 

Nesse contexto, o reacionarismo - keynesiano ou neoliberal - deixou de analisar o capitalismo, as suas incidências sobre a vida social, tomando a economia como conjunto de técnicas de gestão[11], como um conjunto de coeficientes técnicos integrados em cálculos econométricos. A pobreza da análise económica actual face à crise que se arrasta desde 2008 revela-se integrada na continuidade da abordagem neoliberal, não surgindo uma nova fórmulação da gestão do capitalismo no sentido da substituição do preconceito neoliberal, como aconteceu na década de 70 quando aquele se sobrepôs ao keynesianismo reinante; que, por sua vez se havia imposto como resolução da crise de 1929/33, para a qual o liberalismo se mostrara impotente.


Este e outros textos em:






[1]  Em Espanha, à população foi colocada pelo governo, primeiro o de Zapatero e depois o de Rajoy, face a uma fatura de  € 122000 M de ajudas aos bancos http://fleed.pt/dinheiro/reestruturacao-da-banca-espanhola-ja-custou-122-milhoes-de-euros. Por seu turno, o estudo Oliver - Wyman – Beyond Restrutcturing: The New Agenda – European Banking 2017 - mostra um diagrama das fusões que conduziram a uma grande concentração do sistema bancário no estado espanhol
[4]  Oliver Wyman – Beyond Restrutcturing: The New Agenda – European Banking 2017
[5] À época divulgámos a frase “Não se porte como um basbaque, aplique dinheiro no Nasdaq!”
[6] Uma start-up que rapidamente atinge um valor de $ 1000 M
[7] “Por detrás das encomendas, um exército de homens invisíveis” (Courier Internacional, Maio/2013)
[8] Para as taxas de nulas ou negativas, usam-se, em inglês, os acrónimos ZIRP – Zero interest rate policy e NIRP – Negative interest rate policy, respetivamente.
[9]  Sobre o economicismo:
http://www.slideshare.net/durgarrai/economicismo-doena-mental-do-neoliberalismo
[10]  Esta e outras situações neste ponto constam em “La Larga Depresión” de Michael Roberts
[11] Abordámos o tema  aqui  a propósito das business schools atuais

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