Quem
tenha o mau gosto ou a infinita paciência para esperar que a palavra
capitalismo saia da boca de membros da classe política ou da escolástica
universitária, é porque acredita que camaleões possam cantar Verdi.
Sumário
1 - A função financeira e as suas bolhas
2 - O neoliberalismo selvagem e genocida
3 - Haverá uma alternativa keynesiana
anticapitalista?
3.1 – Uma moeda própria?
3.2
– O fomento do consumo privado?
3.3
- O gasto público, o choque keynesiano?
3.4 – A aceitação da dívida não será um acto de
submissão?
4 - Como arquitetar uma
solução anticapitalista
O capital não é abstrato e os seus donos
são gente e instituições concretas que tudo fazem para o valorizar. Por muito
pouco que essa gente represente face à população mundial, são eles que montam
os bailados entre governos e oposições, correspondendo isso à objetiva
contratação daqueles dançarinos como funcionários zeladores dos interesses
essenciais do capital – a sua acumulação, a sua valorização em busca do
infinito.
Com as classes políticas ao seu serviço, o
capital apossa-se dos aparelhos de estado e das instituições pluriestatais, com
particular destaque para as que enformam a burocracia da UE; através deste
controlo, o capital monta os circos eleitorais, apropria-se da punção fiscal, goza
do monopólio da emanação de leis convenientes e da violência, por intermédio de
entes tão pouco simpáticos como polícias, tribunais e cobradores de impostos.
Nada
disto teria um funcionamento sem contestação relevante por parte da plebe se
não houvesse um tentacular aparelho ideológico público e privado, ou melhor,
público-privado. Referimo-nos à escola em geral, à universidade em particular e
aos media, verdadeiros filtros
promotores de ocultação, de mentira e deturpação.
É com
este plano de fundo que a realidade no contexto económico e financeiro teima em
não apresentar cores alegres.
1 -
A função financeira e as suas bolhas
A
função de crédito baseia-se na captação de poupanças de pessoas e empresas para
empréstimo a quem dele precise, mormente para investimento produtivo.
Tradicionalmente são os bancos que desempenham essa função, tendo como
remuneração o diferencial entre os juros pagos aos depositantes e os que cobram
aos mutuários. Claramente, os bancos e instituições a eles ligadas evoluíram,
de um caráter nacional para uma lógica global, formando um sistema financeiro em
que milhares de milhões de registos, beneficiando das tecnologias de informação
e comunicação, mudam de titular e de localização, numa cadência assombrosa e de
modo instantâneo.
Os
bancos e o sistema financeiro em geral rodearam-se de capacidades únicas e
desligadas da realidade social, atuando diretamente ou através de galáxias de
entidades, com nomes obscuros para a maioria, tais como fundos de investimento,
hedge funds, fundos abutres,
imobiliários ou de pensões, bancos de investimento, seguradoras, empresas de
locação financeira, de factoring, de aquisição de crédito e outras. E ainda de
instrumentos parasitários ou com funções especulativas como ações, obrigações,
títulos de dívida pública, certificados de depósito, contratos diferenciais, de
futuros, forward ou de opção, swaps (… o que nos traz à memória a
Maria Luís) derivados sobre divisas, instrumentos financeiros, opções, papel
comercial (onde se enrolaram clientes do BES) e outros, cujas definições se
podem encontrar, por exemplo, na página da CMVM[1].
Toda
aquela vasta gama de “produtos” constitui uma cadeia de interpenetrações, em
que uns dependem da evolução de outros, todos ignorando ou esquecendo a base
real – um crédito efetivo, relacionado com a realidade económica e social. A
compra, venda e recompra desses “produtos” faz-se através de decisões
instantâneas, tomadas por supercomputadores, que se desenrolam em todos os
momentos, promovendo escaladas geradoras de valorizações e ganhos; a que se
seguem, inevitavelmente, períodos de queda, de desvalorizações e perdas em que
os “papéis” parecem queimar as mãos dos seus detentores.
Sublinha-se
que nada mais há do que esses registos informáticos que se interpenetram uns
nos outros, numa matriz de direitos e obrigações, que protagonizam
transferências e mudanças nos valores, sem qualquer correspondência com a
criação de bens ou serviços com destino à satisfação de necessidades humanas.
No entanto, todos os intervenientes necessitam de fundos (próprios ou alheios)
crescentes para essas transações cuja valorização alimenta uma bolha; e é aí,
para evitar o rebentamento dessa bolha por falta de liquidez que Draghi
interveio recentemente para aumentar, de € 60000 M para € 80000 M mensais, o
financiamento pelo BCE do sistema financeiro, com uma taxa de 0%.
Há
quem aponte para ciclos de oito anos os períodos em que as bolhas especulativas
incham até rebentarem, voltando a iniciar-se um novo ciclo. Entretanto, ficam
pelo caminho, os mais imprudentes, com ativos desvalorizados, obrigados a
vendas com perdas elevadas, insuficientes para o reembolso dos capitais tomados
de empréstimo e destinados à especulação, na perspetiva gulosa e demente de que
a valorização dos títulos atinja o céu.
Não
chegará. E como nas bebedeiras, a ressaca não é agradável. Em três semanas de
junho de 2015 a bolsa de Xangai perdeu 30% da sua valorização, no equivalente a
€ 3 biliões, afetando drasticamente sete milhões de novos ditos investidores
atraídos pelas grandes subidas das cotações que se verificaram nos poucos dias
anteriores à queda.
Como
se sabe, na lógica das pirâmides de Ponzi, o seu fim é um dado certo, sendo
incerto apenas o momento do fim da festa; e os jogadores pretendem sempre
explorar ao máximo a fase ascendente do ciclo, tentando adivinhar o ponto de
inflexão. Estamos, dentro dessa métrica, em ano de rebentamento de bolha,
depois da crise derivada dos subprimes
em 2008; credenciados analistas do mercado já previam, um ano atrás, que esse
rebentamento ocorreria em outubro de 2015. Na Europa, Draghi trava uma luta
desesperada contra ao tempo, tentando adiar o rebentamento da bolha, emitindo
mais moeda, esperando que uma retoma (improvável) coloque o “mercado” a
caminhar em cima dos próprios pés.
A onda Draghi
Se
o jogo especulativo permite lucros, valorização dos capitais aplicados, é para
lá que os “investidores” se dirigem, pouco interessados nos verdadeiros
investimentos, na criação de capacidades de produção de bens e serviços, na
satisfação de necessidades. E não consta que as evidentes manchas de pobreza e
a carência de estruturas nos capítulos da educação, da saúde, da ação social,
ou a degradação do parque habitacional, comovam os tais “investidores”; excepto,
quando a beneficência com a criação de fundações, sejam fontes de benefícios
fiscais. Aliás, esses “investidores” bem integrados na racionalidade
capitalista do curto prazo e da rendabilidade máxima, não se mostram
interessados em comprar equipamentos, terrenos agrícolas, contratar
trabalhadores, promover as vendas, etc., onde se evidenciam ciclos diferentes
entre a contabilização de custos de capital e a recuperação ou a eventual
remuneração dos mesmos, onde há que gerir trabalhadores, pagar impostos, cumprir
regulamentos ambientais, elementos esses que não existem ou são muito
aligeirados nos mercados financeiros globais.
Quando
procedem a compras de empresas produtoras de bens ou serviços, os tais
“investidores” visam, desde o princípio, segmentá-las, proceder ao
“emagrecimento de estruturas”, deslocalizar atividades e proceder a
despedimentos, para em seguida realizarem mais-valias através da venda da
empresa adquirida, no seu todo ou em parcelas. A estas criativas práticas o
mercado designa por “downsizing”.
2 -
O neoliberalismo selvagem e genocida
Neste
contexto, em que a especulação, a integração nas pirâmides de Ponzi constituem
o fulcro do destino dos capitais, estes não ficam disponíveis para o
investimento real, de onde resultaria a melhoria da produtividade e do emprego,
a criação de acréscimos de consumo que iriam interagir com a oferta de bens e
serviços, como consta nos manuais de cariz keynesiano.
O
que se disse nos últimos parágrafos expressa a lógica interna do modelo
capitalista, que a procura da maximização da acumulação de capital é o grande
objetivo do capitalismo e, nesse contexto, há uma coerência total no
procedimento da especulação financeira. Subsequentemente, a penúria do
investimento interage com o aumento do desemprego e a repressão salarial que,
por sua vez, impedem o aumento da procura de bens e serviços por parte das
populações, tornando anémico o célebre crescimento do PIB[2], a
formação de rendimento. Para mascarar essa anemia, o Eurostat procedeu, em
2010, a uma alteração na contabilização do PIB que torna esta medida com um
acrescido conteúdo surrealista, manipulável, quando, por exemplo, inclui uma
estimativa dos serviços de prostituição, considera investimento os gastos
militares ou, como um rendimento, os voláteis lucros resultantes das
valorizações de ativos nos balanços, embora lhes seja totalmente ausente, a
montante, uma infraestrutura produtiva ou uma componente em trabalho. Esta
criatividade não inclui os fluxos de capital, relacionados com a corrupção ou o
crime que, a nível global valem uns 10/15 % do PIB; enquanto em Portugal a chamada
economia paralela se aproxima dos 27% do PIB[3] formal.
Se
o capital financeiro domina a economia global e as classes políticas, é de
considerar que os quantitative easings
procurem em primeira instância alimentar a bolha especulativa, empurrar o
próximo estoiro com a barriga e proceder a orações para que possam gerar
impulsos positivos no bem-estar dos povos, enquanto facilitadores do
investimento, atendendo às baixíssimas taxas de juro. Como os fundos
distribuídos através de quantitative
easing pelo BCE, com contrapartidas como garantia em títulos de dívida
pública entregues pelos bancos, são os povos que acabam por assumir um
endividamento perpétuo, custos enormes com juros, que exigem taxas de
crescimento do PIB estratosféricas no âmbito dos contornos do neoliberalismo
vigente[4].
À
anemia da economia juntou-se em anos recentes a deriva da dívida. A solução
neoliberal tem um guião. Como o mercado interno é (sempre) curto, é preciso ser
competitivo para aumentar as exportações; para ser competitivo é preciso baixar
os custos o que, na lógica neoliberal, só pode significar redução do preço do
trabalho; para fazer face aos encargos com a dívida pública - e porque é
limitada (comparativamente) a progressão dos impostos - há que reduzir o
deficit, abater as “gorduras do Estado” e proceder a reformas estruturais, algo
que nunca se sabe bem o que seja; estas últimas conduzem, em regra, a
despedimentos e cortes nos custos sociais, sobretudo na saúde e na educação
mas, também adjudicações e parcerias com privados; para evitar maiores
acréscimos da dívida, concretizam-se apressadamente privatizações e montam-se
todas as facilidades para uma (baldada) atração do investimento estrangeiro.
Como todas as classes políticas nacionais atuam da mesma maneira e o planeta é
finito, concorrem todas para o mesmo, pelo que a solução não existe; qualquer
resultado, em termos globais é uma soma nula.
Hoje,
como sempre, o capitalismo, nunca recusou o recurso à guerra e à morte de
milhões de pessoas para satisfazer os seus interesses globais, para resolver
antagonismos entre grupos de capitalistas em disputa por recursos materiais e
humanos. Nunca o capitalismo levou completamente a sério as várias
manifestações das alterações climáticas e, pelo contrário, procura a partir
delas, criar novas oportunidades de negócio, sujo. Neste contexto, de vistas
curtas e absoluta falta de ética, o capitalismo desinteressa-se completamente
com a sorte de milhões de pessoas desde que os territórios destes possam ser
objeto de devastação, numa lógica extrativista dos seus recursos ou, que sejam
maltratados pelas oligarquias indígenas que garantem ao capitalismo o acesso a
esses recursos.
No
seguimento dessa estratégia de “desenvolvimento” marcadamente neoliberal,
escasseiam os empregos, abundam planos de reestruturação com downsizings, o desemprego estaciona em
níveis elevados, os salários estagnam, as condições laborais deterioram-se e a
precariedade vulgariza-se; os direitos à saúde, à habitação e à educação são
tendencialmente apontados para se integrarem em soluções de mercado, enquanto a
carga fiscal sobrecarrega essencialmente as famílias, pois as empresas terão de
ser aliviadas em nome da sagrada competitividade[5]. Esta é
a política de pobreza que se enquadra na estratégia de “desenvolvimento”
neoliberal e que colocará em breve, em causa, o próprio direito à vida, tornada
variável instrumental dos humores do mercado.
A
pressão para o empobrecimento e a ausência de perspetivas reais de crescimento
económico que a disfarcem, levantam às classes políticas, no seu conjunto, a
necessidade de reduzir a população, impulsionando a emigração e limitando os
custos com os estruturalmente excluídos do “mercado de trabalho”[6] ou com os
que se encontram na reforma. As políticas de limitação de possibilidades de uma
vida condigna e os cortes orçamentais conduzem a formas ocultas, porque lentas,
de atrofia demográfica, social e de genocídio[7].
Será
muito instrutivo que se aquilate a harmonia existente entre as direitas e as
ditas esquerdas, as escassas diferenças estratégicas entre neoliberais e
keynesianos, harmonia essa arquitetada nos grandes centros financeiros -
Frankfurt, Londres, Wall Street, Tóquio ou Xangai.
3 -
Haverá uma alternativa keynesiana anticapitalista?
Não
há um capitalismo bom, apenas nuances
entre o mau e o pior. E é entre essas nuances
que se posicionam, efetivamente os neoliberais assumidos, próximos dos partidos
do lado direito dos regimes cleptocráticos e os defensores de um mítico
keynesianismo, com um repertório mais enquadrado nas esquerdas daqueles mesmos
regimes. Trata-se de máscaras para uma mesma cara. Todos sabemos que é normal esvoaçarem
moscas de várias cores em torno do esterco.
Combater
uma forma de gestão capitalista contra a outra não acelera o seu fim, dá-lhe
novo fôlego e condena mais algumas gerações ao sacrifício. A luta entre
neoliberais e keynesianos não é apenas ideológica; é uma luta pela chave do
pote, com ambas as facções disputando as boas graças da rua ou a neutralidade
da multidão face às suas disputas.
Discussão entre
neoliberais e keynesianos ou entre as direitas e as esquerdas dos regimes
cleptocráticos
Quer
uns quer outros partilham a mesma fixação: o crescimento do PIB, forma
tecnocrática de referir acumulação capitalista. Nessa narrativa, a produção de
bens e serviços deve aumentar para todo o sempre, por muito desajustada que
seja a sua composição, por muito desigual que seja a sua distribuição enquanto
rendimento, por muito demente que seja a consideração de um crescimento em
abstrato, desligado das necessidades humanas e da sustentação do planeta. Na
lógica do capital, se hipoteticamente o PIB for representado pela produção de
batatas e coubesse a cada pessoa um quinhão médio de um quilo por dia, a
exigência de crescimento do PIB (que apenas simboliza e encobre a necessidade
de reprodução do capital) teria de se cifrar em dois quilos por dia, três
quilos por dia… Na lógica do capital, as necessidades humanas não são o
objetivo mas o meio de perpetuar a acumulação capitalista, o que se manifesta
claramente na sua inviabilidade, no exemplo atrás exposto.
Normalmente,
os keynesianos procuram apresentar-se como defensores dos interesses do povo,
como restauradores da bem-aventurança, através de um capitalismo de face humana,
dulcificando o neoliberalismo; propõem o pagamento da dívida pública, a concorrência
e a competitividade, diferenciando-se da direita neoliberal por colocarem o
poder político (leia-se, eles, ocupando a burocracia estatal) a comandar o
poder económico; e subscrevem, muitos deles através de uma visão soberanista e
nacionalista, a saída da UE e do euro, uma visão que compartilham com a extrema-direita
fascizante europeia. Alguns, mais toscos intelectualmente, criticam a evidente
ausência de democracia nas instituições europeias, onde dominam os burocratas
da matriz PPE/S&D, os funcionários designados pelo sistema financeiro ou em
relação promíscua com os lobbies pagos
pelas multinacionais, considerando que as classes políticas nacionais integram
democratas impolutos defensores do povo, mesmo que sejam componentes do mesmo
cartel PPE/S&D atribuindo àquelas maior legitimidade pela razão que os seus
mandarins emanam dos circos eleitorais nacionais.
Os
keynesianos apostam sobretudo em intervenção estatal, são burocratas estatólatras
e daí que incorporem várias estirpes de sócios e simpatizantes do
trotsko-estalinismo. Estes, disfarçam a saudade do capitalismo de estado de
recorte soviético e reagem com incómodo perante a existência da ridícula
monarquia norte-coreana; mas não conseguem evitar a apetência pela sua assunção
como vanguardas iluminadas para o controlo das massas, mesmo quando se enroscam
no PS, para fazer pela vida. Cruzam-se, também, no caminho para o pote, com
universitários bem-falantes prontos a adornar o poder – são os intelectuais
orgânicos, de boas famílias, empenhados na afirmação hegemónica do capitalismo,
como disse Gramsci.
Abordemos,
então, algumas das propostas de política económica que compõem o arsenal
keynesiano:
3.1
– Uma moeda própria?
Ponto forte dos keynesianos nacionalistas é
a posse de moeda própria. Nas antigas economias keynesianas a emissão de moeda
era um recurso típico para aumentar o crédito à economia. Na UE não há
soberania nacional sobre a política monetária, os governos não podem fixar
taxas de juro, de câmbio ou colocar as rotativas a imprimir notas; só o Draghi
é que decide a dimensão da moeda emitida, a política de crédito e que orienta
as taxas de juro, com os parcos efeitos que se conhecem, para além de servirem
de carburante para a especulação.
Essas políticas monetárias eram garantia de
escaladas inflacionistas (antes do euro a inflação em Portugal chegou aos 28%,
para não falar na híper-inflação alemã dos anos 20, ultrapassada recentemente pela
registada no Zimbabwe); a inflação tem sempre como reverso uma conveniente
repressão salarial, para garantir a competitividade das exportações e retrair
as importações, tendencialmente mais caras. Hoje, pelo contrário, no economês
reinante, há queixas pela falta de uma inflaçãozinha que estimule a procura de
bens e serviços, o que é de todo, o oposto ao objeto estatutário do BCE.
Para obviar aos inconvenientes da inflação
no poder de compra dos trabalhadores instituíam-se cabazes de bens com preços
fixados administrativamente e subsidiados pelo erário público, contribuindo
para o deficit público. Não é uma hipótese real nem conveniente[8] uma vez
que o encerramento soberanista de um país periférico, pobre e que nem sequer
tem empresários ou sector financeiro para alicerçar um verdadeiro
desenvolvimento capitalista, não auguraria nada de bom para a esmagadora
maioria dos portugueses.
Na discussão sobre o euro, há a considerar
três hipóteses. Uma, é a zona euro se desmoronar e, nesse caso, haveria de
pensar na conveniência de uma moeda ibérica, dadas as ligações económicas,
financeiras e o comércio entre as duas margens do Caia, do Minho ou do Guadiana.
Um segundo cenário é a oligarquia comunitária decidir afastar Portugal (como a
Grécia) para fora da zona euro, tomado como um caso perdido de sustentabilidade
financeira e, apesar de os tratados não preverem expulsões nem saídas sequer. A
terceira situação, ardentemente defendida por ferrenhos nacionalistas de
tradição trotsko-estalinista ou alguns saudosos de um mítico Viriato, é a
orgulhosa fuga soberanista, sem perceberem que abririam a porta ao fascismo. O
economicismo surge sempre associado à miopia.
3.2 – O fomento do consumo privado?
Uma forma de executar o choque keynesiano é
promover o gasto privado e desencorajar a poupança - admitindo que esta ainda
exista - sem alterações da política salarial. Se aquela existir, num volume
significativo, oriundo das classes médias e baixas, isso significa uma redução
dos depósitos bancários, que os bancos terão de suprir com acréscimos de
capitais próprios ou com o recurso a crédito externo; o que aliás aconteceu em
Portugal durante o boom do
imobiliário iniciado nos anos 80, depois de muito diminuídas, numa primeira
fase, as elevadas poupanças dos portugueses.
Por outro lado, a promoção do gasto só terá
um efeito positivo no crescimento do PIB se houver capacidade de produção
disponível nas empresas, se estas aumentarem as suas capacidades produtivas, se
apresentarem preços que desencorajem a importação ou ainda, se voltarem a
existir controlos nas fronteiras, com sobretaxas que onerem as importações, etc.
Trata-se de muitas variáveis independentes para uma só equação.
Como as classes médias e baixas estão
reduzidas e esmagadas pelo desemprego, pelos salários estagnados ou precários,
pelos cortes, pela carga fiscal regressiva e ainda porque o sistema bancário
sofre de uma grave osteoporose, não é compaginável um aumento significativo e
sustentado do PIB por essa via.
Por seu turno, o turismo – até ver a
coqueluche do (fraco) crescimento luso - gera, obviamente consumo no país mas,
esses gastos envolvem uma forte componente importada, como se pode observar na
origem geográfica dos bens expostos nos supermercados; por outro lado, os
salários auferidos no setor, associados a uma forte sazonalidade não parecem
promover um gasto em consumo, com efeitos que expandam o célebre PIB.
3.3 - O gasto público, o choque
keynesiano?
Para evitar essa dependência de muitos
fatores, relativamente incontroláveis por parte do consumo privado, sobretudo
em economias de mercado, as primeiras aplicações keynesianas centraram-se no
gasto público de que foram pioneiras as experiências de Roosevelt, com os
empreendimentos do vale do Tennessee e o New Deal; e também as infraestruturas
e os gastos militares conduzidos por Hitler, para consolidar a retoma vinda da
anterior República de Weimar e preparar os horrores que se conhecem. No
entanto, quer nos EUA, como na Alemanha nazi, foram os gastos militares que
alicerçaram o crescimento económico, mais do que os gastos em infraestruturas
úteis para as pessoas.
Nos anos 40 foram inventados na Suécia
planos de construção de infraestruturas para contrabalançar tendências de
quebra na atividade, tendo em conta o impacto da construção e obras públicas (o
chamado efeito multiplicador). Recentemente, nos primeiros tempos depois da
abertura da actual crise, a Comissão Europeia ainda optou por esse tipo de
estratégia mas, logo se arrependeu. Isso teve uma expressão nos planos do
governo Sócrates que incluíam um novo aeroporto em Alcochete, nova ponte sobre
o Tejo, a plataforma logística do Poceirão, entre outros, o que exigiria uma
capacidade financeira do Estado que não havia.
Por um lado, havia uma grande dúvida sobre
a utilidade desses investimentos relativamente aos custos. O deficit já era
elevado e havia de dar prioridade à capitalização dos bancos, cessado o habitual
refinanciamento no exterior e uma vez interrompida a volúpia imobiliária. Uma
política de betão não teve cabimento a despeito de um contexto de anemia
económica devido à fragilidade financeira do Estado, à canalização da punção
fiscal para pagamento de dívida e aos elevados constrangimentos de
endividamento externo.
Um programa estatal de cariz keynesiano, de
fomento de trabalhos de construção civil, exigiria uma capacidade financeira
assinalável, uma perspetiva, durante muitos anos, de receita fiscal sustentada e
empréstimos, sobretudo externos, a longo prazo e com juros baixos (a alternativa,
no caso de moeda própria, seria um quantitative
easing doméstico). Planos dessa natureza só têm impacto alargado se incidem
sobre um tecido produtivo com uma matriz densa de relações inter-sectoriais,
caso contrário, promovem avultadas compras ao exterior, perdendo-se grande
parte do impacto em benefício de empresas estrangeiras e em prejuízo do
equilíbrio externo.
As polÍticas de aumento do poder de compra
da população em geral podem promover subida de preços onde houver situações de
cartel (e há muitas) indo aqueles aumentos desaguar nos cofres dos capitalistas.
Têm o mesmo efeito se não houver capacidade produtiva capaz de corresponder a
essa maior procura e na dificuldade de recurso à importação. Não havendo essa
dificuldade, com entraves à importação (não admissíveis na UE) a compra no
exterior dos bens desejados tem efeitos nefastos na balança externa.
Em
tempos de longo aperto sobre as despesas públicas e pressão fiscal global elevada
a níveis de intolerabilidade não é fácil uma política de estímulos. Que áreas
seriam sacrificadas? Os gastos militares não, porque há muito nacionalismo e
militarismo entre os keynesianos e a NATO não deixaria, no âmbito da guerra
contra o terrorismo instaurada depois de setembro de 2001; na saúde e na
educação, as privatizações diretas ou indiretas vão-se fazendo sem resultados
visíveis na redução dos deficits; a burocracia, tende sempre a aumentar, por
manias de controlo, desconfianças sobre descentralizações administrativas e da
sua relevância para a colocação de mandarins e clientelas partidárias ou ainda
para animar compadrios e corrupção. Reduzir ainda mais a tributação sobre as
empresas e onerar em alternativa as famílias é politicamente suicida e só iria
aumentar a fuga dos rendimentos dos ricos.
3.4
– A aceitação da dívida não será um acto de submissão?
Os
keynesianos não vão além da consideração da dívida como um adiantamento de
capital alheio ao qual corresponderá uma taxa de juro; têm uma visão
tecnocrática, economicista, aparentemente acéptica do ponto de vista político, tal
como os neoliberais. Na realidade revelam a sua obediente inclusão nos
desígnios do capitalismo, a subjugação de famílias, empresas e estados face ao
capital financeiro através de uma dívida que preenche o tempo de vida das
pessoas e que arrasta na sua dependência eterna empresas e estados; estes,
procedem depois à imputação dos custos junto das famílias, com cortes sociais e
punção fiscal, uma vez que poupam as empresas, especialmente as grandes, para
não coartar o… crescimento (sempre ele).
Na
realidade, embora se chame juro à remuneração de capitais emprestados, a
perpetuação da situação de devedor transforma essa remuneração numa renda, num
tributo com cheiro feudal, de caráter político, totalmente fora de uma relação
normal entre devedor e credor, na qual o tempo de reembolso é bem definido e se
pressupõe a capacidade desse reembolso por parte do mutuário. Uma dívida eterna
inclui uma relação de submissão.
No
caso da dívida pública, a sua constituição é feita por acordo ou conluio entre
classe política e grandes instituições financeiras, fundos e outros entes
especulativos, sem que os pagadores (os povos) sejam consultados em caso algum.
Os credores contam com a conivência das classes políticas para impor à plebe o
pagamento, por convencimento moralista (não somos caloteiros!), pela coação
fiscal (ou outra ainda mais punitiva), no âmbito do monopólio da violência que
é apanágio dos estados.
De
modo muito ligeiro, alguém poderá aceitar que um governo, a parte dominante da
classe política, como representante do povo, da nação ou outra denominação afim,
contraia uma dívida junto do sistema financeiro e mesmo no exterior. Essa mesma
pessoa, se de seu perfeito juízo porém, nunca iria contrair uma dívida sem um
objetivo concreto, por capricho, moda ou para agradar ao banqueiro. Uma dívida
pública, sobretudo de médio ou longo prazo, não está associada a um fim
específico, a uma aplicação que constitua um benefício para o povo, seja um
hospital, uma escola, uma estrada, uma barragem; e todos percebem que é para
isso que servem os impostos.
Sucede
que nos 840 euros que cada português, em média irá pagar de juros de dívida
pública, em 2016, ninguém consegue almejar que benefícios sociais foram
conseguidos com os capitais mutuados e pelos quais se pagam juros. Para mais,
sobram situações de falcatrua, corrupção, compadrio, negligência, por parte das
governações; de forma não fortuita mas, continuada, sistemática e sem fim à
vista.
Para
quem goste de quantificações, estimativa por nós elaborada em 2014, com três
variantes[9],
apontava para um esforço necessário para o pagamento de juros e cumprimento do
plano de amortizações então conhecido, até 2021, correspondente a 5.8 e 12.4%
do PIB, por ano, tendo sido considerado entre essas variantes, uma que
contempla a frouxa proposta da esquerda eleitoral, keynesiana, de renegociação
da dívida.
Essa
postura de consideração como pagável de uma dívida que o não é e que representa
uma forma de cativação, escravização[10], de um
povo revê,la que a esquerda keynesiana está do lado do capital financeiro, a
despeito da sua fraseologia populista. Para cúmulo do que se poderá considerar tontice
é que há quem aceite a dívida, renegociada em prestações suaves com banqueiros
bonzinhos – e até da forma politicamente mais imbecil [11] - e
simultaneamente seja nacionalista, como se fronteiras e moeda própria fossem
formas expeditas de sair do torniquete montado pelo capital financeiro
globalizado.
Hoje, existem duas estratégias para a
manutenção do capitalismo – o neoliberalismo dominante e o keynesianismo, como challenger e que se mesclam no âmbito da
grande capacidade de adaptação que o capitalismo tem apresentado[12]. São a
mesma gororoba servida em pratos de cores diversas para
manter a multidão anestesiada.
4 -
Como arquitetar uma solução anticapitalista
Do
ponto de vista tático há uma questão essencial a colocar entre os
anticapitalistas. Até onde ir na colaboração com as esquerdas eleitorais e
keynesianas contra os governos neoliberais?
Aquelas
esquerdas eleitorais são defensoras do capitalismo ao qual admitem a
necessidade de brandas reformas, do mesmo modo que são de um imenso
situacionismo no capítulo da democracia de mercado, que, de facto, nada tem de
democrática. Por outro lado, são firmes defensores duma pouco virtuosa
autoridade estatal, da estratificação hierárquica a nível social, da
necessidade de uma classe política, de uma burocracia para a gestão das
necessidades coletivas, de estados-nação para dividir a Humanidade em pátrias e,
last but not the least, defendem a
propriedade dos meios de produção nas mãos de patrões, para disciplinar a plebe,
como instrumento de segmentação social, fonte de privilégios, de perpetuação de
exploradores e explorados. E porque são defensores do capitalismo, o regime
cleptocrático é simpático para com eles dando visibilidade televisiva a keynesianos
e trotsko-estalinistas, oferecendo-lhes até, lugares à mesa do majestático
conselho de estado onde Draghi estará como convidado especial[13].
Acontece
que a multidão vai observando o comportamento destas “esquerdas” não lhes dando
possibilidade de grandes subidas eleitorais ao mesmo tempo que, com grandes
níveis de abstenção, a multidão se recusa também a votar nas direitas
tradicionais insertas na amálgama europeia PPE/S&D que, gradualmente, vem
incluindo na sua prática, derivas autoritárias e excludentes para impedir
maiores danos eleitorais vindos de partidos xenófobos (UKIP, AfD) ou fascistas
como o PiS de Kaczynski, o Fidesz de Orban, a FN de LePen); longínquos estão os
tempos em que a UE rejeitou a Áustria onde um fascista – Haider – chegara ao
poder.
Entendemos
que pontualmente, num ou outro protesto, numa ou outra ação concreta, é
possível algumas pontes, dos anticapitalistas com a esquerda eleitoral e
keynesiana mas, jamais uma concertação estratégica. Mesmo numa ação contra a
direita neoliberal, contra o militarismo, quando menos se espera, os grupos da
esquerda do regime, podem mudar de campo, por motivos estratégicos de defesa do
capital ou por um maior quinhão do pote[14].
O
fulcro da atuação deve estar com as pessoas comuns, que não têm filiações
partidárias, que sofrem isoladas a agressão do capitalismo, dos seus governos,
dos restantes serventes das classes políticas e que são humilhados no trabalho
ou na falta dele, com subsídios miseráveis e precários, trabalho compulsivo e
gratuito e apresentações regulares, como criminosos; pessoas a quem é
necessário fazer brotar a autoconfiança e a auto-organização para mudar o
actual estado de coisas, sem divisões quanto à nacionalidade, religião ou
“raça”, contrariando a onda xenófoba que grassa na Europa.
Este
e outros textos:
[1] http://www.cmvm.pt/pt/SDI/ProdutosFinanceirosComplexos/Pages/Gloss%C3%A1riodetermosrelativosaInstrumentosFinanceiros.aspx
[2] O PIB é uma medida da
riqueza criada, da produção de bens e serviços gerada pelo trabalho embora seja
tomado geralmente como um objetivo social, sem ter em conta se resulta de
lucros de especulação ou em salários (na lógica do rendimento) ou, se resultou
de uma aumento do consumo ou de gastos públicos em equipamentos militares
(lógica da despesa); para além e ainda, sem ter em conta o que se inclui sobre
o termo consumo.
[3] https://www.publico.pt/economia/noticia/a-economia-paralela-em-portugal-1694348
[4] http://grazia-tanta.blogspot.pt/2014/03/porque-nao-e-pagavel-divida-publica.html
[5] http://grazia-tanta.blogspot.pt/2016/01/os-apoios-fiscais-as-empresas-favorecem.html
[6] Esta expressão reveladora
de que há, de um lado empregadores e do outro, colaboradores é de um cinismo
aviltante, pois esconde o antagonismo criado pela profunda desigualdade
existente nessa relação mercantil. A sua utilização pelos próprios trabalhadores
e mesmo, sindicalistas, revela a assunção, por cada um, da condição de máquina produtora
dessa mercadoria especial chamada força de trabalho e que o esforço físico, o
intelecto e ainda - com o pós-fordismo - o afeto, são mercadoria.
[10] Sobre este tema nada melhor do que ler “Debt:
the first 5,000 years” de David Graeber de que existe edição em castelhano ou
ainda “A maneira mais simples de desobedecer ao mundo
financeiro é recusar pagar as dívidas”
Antes de mais devo dizer que consegui ler o artigo até ao fim e creio não ter perdido o fio à meada, apesar de muitos dos termos usados me serem desconhecidos. Estão de tal modo contextualizados que não precisei de voltar atrás para retomar o raciocínio do autor. Capacidade brilhante a do autor, não a minha. Ou seja, em jeito de conclusão, a bolha vai rebentar, salve-se quem puder, que venha o diabo e escolha. Ou estoiramos com todos eles, ou eles acabam de estoirar connosco. "Da Ditadura à Democracia" era o livro que os 17 estavam a ler aquando da sua detenção. Vou ficar tentando descortinar com os 'meus botões' se há salvação para o Mundo, ou se deva começar a construir uma "arca de Noé". Muito obrigada pelo excelente artigo. Quando a bolha rebentar, se é que me servirá de alívio, sentir-me-ei mais esclarecida.
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