sábado, 24 de novembro de 2012

'RELATO DA MANIFESTAÇÃO DE 14 DE NOVEMBRO


Relatos sobre a bestialidade policial podem preencher verdadeiras enciclopédias. O que têm de diferente só é novo a primeira vez em que a bestialidade está defronte dos nossos olhos ou deixa marcas no nosso corpo, no nossso espírito. E o choque é multiplicado sempre que uma qualquer gravata encimada pela cabeça de um burro nos informa que vivemos "num Estado de direito". E geração atrás de geração o Estado, os seus governos, os seus polícias revelam sempre a bestialidade que constitui cada elemento do seu código genético. Geração após geração há sempre quem acredite no conto do vigário

S D, (omitimos o nome) uma das capturadas pela PSP, durante a manifestação de 14 de Novembro, explica, na primeira pessoa o que se passou e como foi no Tribunal de Monsanto (escrito no dia 15). E previnam-se, a bestialidade veio para ficar e para se refinar; proporcionalmente ao empobrecimento e materializando a perda de direitos, o esmagamento da cidadania.

''RELATO DA MANIFESTAÇÃO DE 14 DE NOVEMBRO


Ao contrário do que muitos possam pensar eu não tenho qualquer sede de protagonismo ou vontade de me expor, antes pelo contrário, há até alturas em que prefiro honestamente passar despercebida, mas esta altura não é (porque não pode ser) uma delas.

Decidi escrever este texto porque como cidadã sinto-me não só no direito como na obrigação de relatar o que realmente aconteceu na passada manifestação de 14 de Novembro na Assembleia da República, e digo realmente porque infelizmente mais uma vez a comunicação social preferiu manipular e ocultar a verdade, já para não falar das nojentas e falsas declarações da PSP.

Cheguei a São Bento acompanhada do meu namorado e dois amigos por volta das 16:00/16:30 quando o Arménio Carlos da CGTP ainda estava a discursar. Mantive-me lá alguns instantes, tendo depois chegado outra amiga nossa. Entretanto desloquei-me com uma amiga ao Mini Preço e qual não foi o meu espanto ao ver quando voltámos que já as grades tinham sido derrubadas e já um enorme alvoroço ocorria. Quem esteve presente não pode mentir e ser hipócrita dizendo que não houve violência da parte dos manifestantes pois é claro que houve, durante duas horas os polícias do corpo de intervenção foram agredidos com pedras da calçada, balões de tinta, garrafas de cerveja, etc.

Foram agredidos sim, mas por uma MINÚSCULA minoria dos que estavam presentes na manifestação! No meio de milhares de pessoas talvez só umas 10 (e bem visíveis) arremessavam pedras e outros objectos. Independentemente da agressão que sofreram NADA justifica o que se passou em seguida… de repente, sem qualquer aviso prévio, (embora a comunicação social e a PSP insistam que houve um aviso feito através de megafone quem esteve presente na manifestação sabe tão bem quanto eu que não se ouviu absolutamente nada e que não foi feito qualquer esforço para que se ouvisse…) a polícia carregou sobre os manifestantes com uma brutalidade sem medida e que eu jamais tinha visto na vida. Como todos os outros comecei a correr e encostei-me à parede, de seguida várias dezenas de pessoas (muitas de idade avançada) se juntaram a mim e tentámos todos proteger-nos uns aos outros. A maioria das pessoas chorava e gritava “PAREM! PAREM POR FAVOR! NÃO FIZEMOS NADA!” e a polícia continuava a espancar toda a gente sem dó nem piedade e ainda com mais força! Vi velhotes a serem espancados, sei de pessoas que viram pais a serem espancados com os filhos pequenos ao colo, sei de pessoas que viram a polícia a tentar espancar uma pessoa de cadeira de rodas e vários manifestantes a rodeá-lo apanhando a pancada por ele para o protegerem. No meio de tanta violência, confusão e multidão histérica tentando sobreviver o melhor que sabia, consegui fugir com o meu namorado mas acabámos por nos perder dos nossos amigos. Continuámos sempre a fugir em direcção à Avenida Dom Carlos I, várias vezes parámos pelo caminho pensando que a polícia já não vinha atrás de nós, e várias vezes tivemos que fugir novamente pois a perseguição continuava. Acabámos por encontrar novamente um dos nossos amigos e depois de vários chamadas telefónicas soubemos que as duas meninas nossas amigas tinham ficado retidas pela polícia, marcámos um ponto de encontro e passados uns minutos elas lá conseguiram fugir e encontrámo-nos todos. Daí para a frente o nosso único objectivo era conseguirmos perceber o que se estava a passar mas acima de tudo assegurarmos também a nossa segurança, mas rapidamente percebemos que tal não seria possível. A polícia pura e simplesmente não parava de perseguir os manifestantes! Continuámos sempre a fugir, parando pelo meio para curtos descansos pois a perseguição continuava… já na Avenida 24 de Julho pensámos estar safos mas que mera ilusão, aí ainda foi pior! A Polícia continuava atrás de nós e de muitos outros mas desta vez disparando balas de borracha! Todos corremos apavorados o máximo que podíamos até que de repente mesmo ao pé da estação de comboios fomos interceptados por um grupo de polícias à paisana que violentamente e chamando-nos todos os nomes e mais alguns nos obrigaram a encostar às grades da estação enquanto mandavam ao chão e agrediam outras pessoas.

Lá ficámos sendo enxovalhados e revistados vezes e vezes sem conta. Os rapazes foram todos algemados (uns com algemas e outros com braçadeiras) e separados das raparigas e de seguida fomos obrigados a sentarmo-nos todos no chão sem saber o que ia acontecer pois os polícias só nos intimidavam e não respondiam a nada. Devo frisar que devíamos ser cerca de 15/20 pessoas todos na sua maioria jovens adultos (18/20 anos) e inclusive um rapazinho de 15 anos! Lá fui posta dentro da carrinha com as minhas duas amigas, com o meu namorado e com mais 6 jovens (um dos amigos que tinha ido connosco conseguiu fugir), ou seja 9 pessoas dentro de uma carrinha com capacidade para 6. Fomos dentro da carrinha (os rapazes todos algemados) sem nunca nos ter sido fornecida qualquer informação sobre o lugar para onde íamos ou sobre o que nos ia acontecer. Chegando ao local estivemos uns intermináveis minutos todos fechados dentro da carrinha até que com intervalos pelo meio nos foram tirando de lá um a um, até no final só ficar eu. 

Fora da carrinha agarraram em mim sempre a gritarem “BAIXA A CABEÇA! OLHA PARA O CHÃO CARALHO!”. Já dentro da “esquadra” (Tribunal de Monsanto, o que por si só representa uma ilegalidade) fui escoltada por uma mulher polícia até à casa de banho onde me obrigaram a despir INTEGRALMENTE, onde me obrigaram a colocar-me de cócoras para verem se tinha algo escondido na vagina ou no ânus, onde me obrigaram a tirar todos os brincos, anéis, pulseiras, atacadores dos sapatos e os próprios sapatos! Fui obrigada a dar o meu nome e data de nascimento. Ficaram com todos os meus pertences (incluindo o telemóvel que antes me tinham obrigado a desligar) e fui levada até à cela de meias num chão gelado! Lá á minha espera estavam as minhas duas amigas e outras duas meninas que também tinham sido detidas. O que se passou a seguir foram duas horas e meia ridículas e sem qualquer sentido… foram-nos sempre negados os telefonemas para casa, sempre que alguém falava nisso alegavam que não sabiam de nada, nunca nos disseram porque estávamos ali, nunca nos respondiam concretamente a nada, apenas mandavam bocas estúpidas! Ficámos na cela duas horas e meia ao frio, sem comer, sem beber, descalços e vá lá que nos deixaram ir à casa de banho embora às meninas tenham dito “espero que tenham aproveitado pois só lá voltam amanhã”. Passadas essas duas horas e meia fomos sendo chamados um a um para recolhermos os nossos pertences e para serem feitas as identificações. Foram preenchidas folhas em que nos eram pedidos todos os nossos dados (BI, nome dos pais, morada, telemóvel, telefone fixo, profissão, etc. …) tendo que assinar no final, caso não o fizéssemos não sairíamos dali. Lá fomos embora, vendo-nos todos no meio do Monsanto muitos sem saberem sequer como ir para casa.

Não fomos espancados na “esquadra” mas fomos todos vítimas de humilhação e violência psicológica. Todos fomos detidos injustamente sem nunca sequer termos sabido o porquê da detenção. Fomos perseguidos como criminosos desde São Bento até ao Cais do Sodré! Éramos todos jovens (como já frisei a média de idades devia rondar os 18/20 anos) cujo único crime cometido foi termos participado numa manifestação. Nem eu, nem nenhum dos meus amigos arremessámos qualquer pedra, garrafa ou o que quer que fosse, não o fiz desta vez nem em nenhuma outra manifestação. Fomos detidos e perseguidos injustamente quando já nos dirigíamos ao Cais do Sodré para apanharmos um táxi para casa!

Quem não esteve presente e não viveu tudo isto certamente pensará que estou a exagerar ou a dramatizar, mas acreditem que não, as coisas foram bem piores até do que aquilo que descrevo. A repressão policial sentida ontem foi muito, muito grave e digna dos mais nojentos regimes fascistas e ditatoriais! As pessoas estavam literalmente a ser espancadas e perseguidas nas ruas e não tinham ninguém que as protegesse! Eu vi velhos cobertos de sangue! Vi mulheres e homens aos gritos de medo e desespero!

Há quem sem sequer ter estado presente insista em “proteger” os polícias e dizer que agiram muito bem, que quem lá estava só tinha era que apanhar, que eles coitadinhos foram agredidos com pedras durante duas horas, que muito pacientes foram eles, que nós os manifestantes somos todos uns arruaceiros. A essas pessoas eu só vos digo: VÃO-SE LIXAR! Abram os olhos, abram a mente e vejam a realidade que vos rodeia! Vão a manifestações e vejam por vocês próprios o que realmente acontece! Sejam humanos, sejam solidários e deixem de acreditar em tudo o que a comunicação social vos mostra! NADA justifica tudo aquilo porque eu e milhares de pessoas passámos e isto não pode ficar impune! Toda a gente tem o direito de se manifestar sem ser agredido brutalmente ou perseguido! Fala-se num aviso feito pela Polícia de Intervenção mas ninguém ouviu esse aviso! Um dos rapazes que foi detido no Tribunal do Monsanto nem sequer tinha participado na manifestação, ia apenas a passar na Avenida 24 de Julho no momento das detenções! Acham isso bem? Acham correcto que dezenas de jovens inocentes tenham sido detidos sem terem cometido NENHUM crime? Eu não acho, acho vergonhoso, nojento e muito grave num país que se diz democrático e de 1º mundo! Foram queimados caixotes do lixo e postos a bloquear estradas? Sim foram, mas tudo como uma resposta de enorme ódio e revolta em relação à acção desumana da polícia! Eu era a primeira a ser contra o arremesso de pedras mas depois do que vi e vivi ontem digo com a maior tristeza do mundo: quem age assim não é um ser humano, é uma criatura maldosa e formatada e merecem o que lhes venha a acontecer daqui para a frente. São cães raivosos, mercenários do Estado que vestem a farda da ditadura em vez de protegerem o povo!

A todos os que foram detidos comigo, principalmente quem veio comigo na carrinha e as minhas companheiras de cela: OBRIGADA a todos! Obrigada pelo apoio, pela união, pelo convívio e risos mesmo numa altura tão triste para todos, pelas canções e assobios, pela partilha de opiniões e experiências e acima de tudo por lutarem por um país melhor para todos! Obrigada também a todos os que estavam à nossa espera à saída do Tribunal do Monsanto e a todos os que se preocuparam connosco.

Estou viva, bem fisicamente mas muito, muito triste e desiludida com tudo o que vivi … ainda estou em estado de choque e a achar surrealmente grave tudo aquilo que se passou. Peço desculpa se o texto não está o melhor possível mas é muito complicado relatar com exactidão tão chocante experiência.

O objectivo era incutir-nos medo e fazer-nos não frequentar mais manifestações? Teve o efeito exactamente contrário: não me calam e jamais me impedirão de lutar por aquilo em que acredito! A luta continua sempre! VOLTAREMOS!''



Notas adicionais sobre os acontecimentos de 14 de novembro   

1 – Há evidentes infiltrações policiais, com tanto mais êxito quanto o número de manifestantes não é muito elevado;

2 – A concentração das manifestações em um só lugar favorece a infiltração e a concentração da polícia;

3 – Mesmo que o pessoal denuncie os provocadores da polícia sujeita-se a ter problemas porque o número de manifestantes não é muito elevado;

4 – Há, sem dúvida pessoal desesperado que alinha logo na violência mesmo quando colocada num cenário dominado pela polícia;

5 - Se havia 15/18 tipos que atiraram pedras (dito pela polícia) então porque bateram a eito em tudo o que mexia? Para promover o medo;

6 – Porque se atrapalhou o Macedo quando lhe falaram em provocadores? Porque lhe interessa ocultar que o governo toma atitudes próprias para gerar o medo;

7 – O elogio do Macedo à CGTP é uma forma de encarrilar os protestos para as procissões e os discursos do Arménio, para a AR e a Concertação Social; isto é, conter a contestação dentro do sistema;

8 – O que carateriza o momento actual é que o sistema é o inimigo a abater; o ordenamento económico, a organização política e o modelo de representação do povo. Por isso se diz “eles não nos representam!”;

Para terminar uma dica de Mao Tse-Tung;

“Não participar nenhuma batalha sem preparação, nem provocar  nenhuma batalha sem ter a garantia de a ganhar; fazer todos os esforços para estar bem preparado para cada batalha, fazer todo o possível para que a correlação existente entre as condições do inimigo  e as nossas nos assegure a vitória” (recordo que no exército colonial português, as preleções sobre guerra de guerrilha do Mao eram leitura obrigatória patrocinada pelo regime fascista!)

Qual a correlação de forças em S. Bento? Escusamos de referir

Há mais uns aspetos a considerar:

1 – Uma manifestação é, em princípio, um pronunciamento, um protesto de grandes massas de pessoas e não um exército ou um grupo de guerrilheiros preparado para combater a polícia. Se por qualquer razão não provocada pela multidão, a polícia decidir arrear - o que é sempre possível - não deveremos ser nós a dar-lhes argumentos para eles apresentarem no telejornal;

2 – Não há polícias bons nem polícias maus, há polícias ao serviço do poder que nos oprime e rouba. Esse é visceralmente mau e a polícia articula-se em cadeias hierárquicas de caráter militarizado, obedecendo caninamente à tática adotada pelo poder, em cada situação concreta;

3 – Lastimavelmente, não tem sido possível a malta não integrada no sistema organizar-se de modo a banir ou isolar os provocadores policiais e enquadrar pessoal pouco politizado mas, muito revoltado com isto em que vivemos. Revolta é um estado de espírito, revolução é um processo muito complexo que exige uma utilização inteligente da revolta;

4 – Temos dito várias vezes que S. Bento politicamente significa o poder a que não reconhecemos legitimidade, sabendo-se que não é essa a posição daqueles que se sentem felizes por terem guarida entre os “gorilas” da CGTP,- que como é sobejamente conhecido têm relações amistosas com a polícia – e que andam entre nós mascarados de “movimentos”;

5 – Topograficamente, S. Bento pretende mostrar o poder lá em cima e a plebe, os inferiores, cá em baixo. E para os sonhadores da guerrilha, a topografia do local coloca a polícia na posição dos guerrilheiros de Giap e os lançadores de pedras no papel das tropas francesas (que se renderam depois de levarem nos cornos) em Dien Bien Phu;

6 – Se se pretende que mais e mais pessoas venham às manifs é preciso – mesmo quando na cauda das procissões do Arménio – apresentar palavras de ordem inteligentes, mobilizadoras, transformar os finais das manifs em locais de conversa e discussão, sobretudo quando os fiéis do Arménio arrumam a trouxa, deixando para trás muitos trabalhadores à procura de novidades, de ideias mobilizadoras, de alternativas para além de um estafado “CGTP, unidade sindical”. E isto sem quaisquer fatores de desacato, para não favorecer o sistema;

7 – Ao pessoal mais dado à ação direta, que queira partir montras de bancos ou outras formas estritamente ilegais de golpear o sistema, que se organizem em grupos pequenos, de afinidade, preparando o melhor possível as coisas, para não serem engavetados; mas nunca misturados com manifs;

8 – Perante a bestialidade policial e as atitudes contrárias às leis do sistema do dia 14, fogo à peça para a denúncia, para a instauração de processos, sobretudo onde se possa incriminar o agente A ou B, pois ao que parece, a instituição policial não se mostra muito empenhada na defesa dos robocops nessas acusações individualizadas. Pena foi que durante as atitudes da polícia, há cerca de dois anos, durante a Cimeira da NATO ou no seguimento dos acontecimentos de Setúbal no 1º de maio de 2011 não se tenha avançado nessa via. Teria sido divertido.


Este e outros documentos em:



1 comentário:

  1. se a conexão implica conhecimento,e se o conhecimento implica muito tempo de vida,digo que a vida é curta ,e mais valias teremos em aplicar o nosso descontentamento,sem ideologias.ou conexões e em verdade faremos mossa.

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