domingo, 15 de novembro de 2020

Paródia na paróquia – a eleição presidencial

 Sumário

1 – Democracia, sim; palhaçada não!

2 - As figuras de Presidente da República (PR) no atual regime

3 - O crescente desinteresse pela eleição presidencial… e não só…

4 – A inutilidade de um cargo marcado por saudosismo monárquico

5 – Que filosofia e instrumentos para a construção da democracia?

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1 – Democracia, sim; palhaçada não!

Há cinco anos, num contexto de várias publicações sobre o modelo de representação contido na Constituição da República Portuguesa (CRP), definimos a existência de um Presidente da República (PR) como uma inútil figura, com cheiro monárquico. Passado este tempo, entendemos voltar a abordar o assunto, na proximidade de nova romaria eleitoral, de um exercício ritual no seio da classe política, que não trará qualquer resultado prático e útil para a vida do povo. A próxima eleição trata-se de mais um tempo de entretenimento que funcionará como um campeonato, desta vez com a presença da pandemia.

Uma vida democrática exige o envolvimento de todo um povo, uns temporariamente escolhidos para executar as demandas populares e, todos para observar os desempenhos daqueles executantes; procedendo, se necessário ou conveniente, à sua liminar e oportuna substituição, através de fórmulas rápidas e lapidares. Para o efeito é preciso que essas decisões envolvam todos, no âmbito geográfico adequado, como os zeladores mais interessados pelo bem-estar social. Isso, porém, não acontece, de modo algum, uma vez que a representação está falseada com a exclusiva candidatura de indivíduos provenientes da classe política, um grupo relativamente pequeno de gente, fortemente ancorado em estruturas fechadas e hierarquizadas que se designam por partidos, pagas formalmente, apenas por dinheiros públicos; e que se sabe serem complementados com pagamentos por favores prestados aos mais ricos.

Como se sabe, em Portugal, para a Presidência da República, tudo é preparado e confinado ao seio da classe política; sabe-se, a priori quem vence e, de fora da classe política, não é viável o surgimento de um outsider com hipóteses de se sobrepor a candidaturas provenientes do partido-estado, PS/PSD, mais concretamente. Para cúmulo, a promíscua relação entre a classe política e os media, coloca ab initio, fora de mediatismo, qualquer outsider. Recorde-se que a popularidade do atual presidente foi conquistada, durante anos, na tv, num programa misto de comentário político e de promoção da venda de livros.

Os media organizam um ou outro debate com os candidatos de topo e, em separado, com os propostos por partidos de segunda linha – ou algum raro “para-quedista”, para dar um ar de democracia. E, por vaidade, candura ou estupidez, há sempre quem se candidate nos pleitos viciados que o regime promove; isso acontece em Portugal, como nos outros países, dado o verdadeiro monopólio político e ideológico das democracias de mercado, espetáculos de mediocridade, como se verificou, recentemente, entre Biden e Trump.

No regime fascista português, as coisas eram mais claras; a oposição era silenciada, tout court, se necessário com a prisão e a tortura. Na então Assembleia Nacional também havia um centrão (os apoiantes do presidente do conselho de ministros) tal como hoje domina o PS/PSD; uma “esquerda”, minoritária que, após a queda do regime deu origem ao atual PSD; e, uma direita, católica e agressiva, defensora da continuidade do colonialismo (Kaúlza e Tenreiro) e que hoje, tem outro significado, representada pelos rapazinhos do CDS, para além da ventureca figura que os media tanto divulgam.

No regime pos-fascista, a oposição tem o dom da palavra mas todos sabem que os ganhadores estão sempre ligados ao partido-estado, a coluna vertebral do regime e que… nada mudará de substantivo, por mais romarias eleitorais que encenem.

Para a classe política, no seu conjunto, o país é um género de propriedade privada para sua fruição; e o povo, uma vasta mole de súbditos, de eunucos políticos, eternamente em estado de agradecimento e veneração, alheios ou cegos face à mediocridade da classe politica. Povo esse que se deve ainda sentir bafejado pela sorte de ser infestado, até à saturação, com os debates, os discursos, as promessas, as vacuidades com que a multidão é amansada, imbecilizada, diante dos écrans que tem sempre diante dos olhos.

Uma vida democrática exige o alargamento ao maior número possível de pessoas das funções de representação, com mecanismos que impeçam a sua perpetuação em situações de representação. Esse alargamento deve compreender a criação de uma larga massa de pessoas, como intérpretes e executores das ações dedicadas ao bem-estar social. Isto é, exatamente o contrário do enquistamento actual de gangs mafiosos parasitando o erário público e promovendo desvios na aplicação de fundos para proveito próprio, do partido ou, de quem melhor pagar; seja em géneros, cargos ou transferências para offshores.

Onde isso não exista, a democracia é algo de inexistente ou marcada por numerosos entorses e tumores que, direta ou indiretamente recaem sobre o bem-estar dos povos e na engorda de uma classe política, onde avultam parasitas, incapazes e corruptos que, algum tempo depois se desvanecem, surgindo posteriormente como distintos empresários ou com cargos em empresas estatais, autárquicas ou, de amigos. Claro, que em termos legais nada há a dizer pois o compadrio e a corrupção são ignorados ou ocultos, cobertos por legislação protetora, no âmbito de um sistema judiciário, normalmente castrado ou conivente, porque pago com proventos e mordomias, promovidos pelos principais gestores do sistema, a classe política. Convém não esquecer a intermediação de entidades particularmente discretas – de advogados[1] – que acolhem (também) nos seus quadros, gente da classe política para efeitos das convenientes intermediações.

2 – As figuras de Presidente da República (PR) no atual regime

Os primeiros Presidentes da República (PR) que se seguiram ao 25 de Abril, não foram eleitos pelo povo, uma vez que as primeiras eleições só se efetuaram em 1976, após a aprovação da Constituição atual. Vivia-se então, num regime militar e daí que esses primeiros PR, tivessem sido militares (generais), num seguimento temporário da prática do regime fascista, respeitador e incentivador do respeito da plebe pelas fardas.

António de Spínola, conhecido pelo “caco” - dado o ridículo monóculo que ostentava para se equiparar a um oficial prussiano do século XIX - foi demitido e fugiu para Espanha, após uma intentona falhada para se apossar do poder, apoiado pela extrema-direita (setembro de 1974).

Seguiu-se outro general, Costa Gomes, que exerceu o cargo até junho de 1976, até à eleição de Ramalho Eanes. Costa Gomes era um conciliador e daí que nos jornais ingleses da época fosse referido por Costa “Cork” (rolha) Gomes.

Ramalho Eanes, também general e coordenador da “normalização” do regime em novembro de 1975, foi eleito em 1976 e em 1980 como Presidente da República e foi o intérprete da consolidação do atual regime, oligárquico, militarmente alinhado com a NATO e, então em ânsias para a inclusão na UE… de onde a classe política e o empresariato esperavam um maná; que veio mas, largamente dissipado nos bolsos do culturalmente indigente empresariato e da cúpida classe política; e que não retirou Portugal da situação de país mais pobre e com menos instrução da Europa ocidental. E, numa época de inflação, deficits e do empobrecimento acelerado[2] voltou-se a uma longa tradição de esmagamento dos rendimentos populares – o desenho do atual regime pos-fascista.

Eanes, indiretamente, criou um partido político (PRD) em 1985, que pretendia viesse a ser uma âncora do poder, menorizando o PS e o seu gêmeo, o PSD, muito ligados à crise económica e financeira de 1983/85, que só viria a ser superada com o começo da entrada dos fundos comunitários.

Seguiu-se como PR, Mário Soares, primeiro-ministro que, como se tornou norma, manteve o cargo durante dez anos (1986/96), passando depois a uma reforma dourada, como o seu antecessor e os vindouros no cargo. Iniciava-se assim a entrega do cargo a alguém do PS/PSD e, para dois mandatos. Soares foi primeiro-ministro em 1976/78 e 1983/85.

Jorge Sampaio (1996/2006) nunca se tornou primeiro-ministro mas contracenou com Guterres, Durão Barroso, Santana e Sócrates como titulares daquele cargo. Na viragem do século teve de fazer face aos efeitos da renúncia de Guterres como primeiro-ministro (2001), convocando eleições que conduziram à nomeação de Durão Barroso para o cargo; este, que por sua vez, renunciou ao mandato (2004) para aceitar a nomeação como presidente da Comissão Europeia, premiado pelos seus méritos de estalajadeiro nos Açores na recepção a Bush, Blair e Aznar, para estes prepararem a invasão do Iraque.

Num curto período, a chefia do governo PSD/CDS coube a Santana Lopes do qual não se esperavam capacidades para um bom desempenho; e, como a chefia do PS havia recaído em Ferro Rodrigues, afetado pelo caso da pedofilia na Casa Pia, Sampaio teve de procurar alguém como José Sócrates, nomeando Ferro Rodrigues para uma tranquila estadia em Paris como embaixador português na OCDE. As novas eleições elegeram Sócrates como chefe do governo em 2005 e, um ano depois, Sampaio passou o testemunho a Cavaco Silva.

A sinistra figura de Cavaco Silva (2006/16) cruzou-se com José Sócrates, Passos Coelho e António Costa, enquanto primeiros-ministros. Foi nesse período (2008) que ocorreu a burla BPN (…nacionalizado por Sócrates) que enriqueceu figuras gradas do PSD e próximas de Cavaco que, nesse período fez uma troca muito polémica da sua residência no Algarve. A crise do subprime caiu com estrondo na economia e na sociedade portuguesa em 2011, com os banqueiros a decidirem a queda do governo Sócrates, com o apoio na AR da “esquerda” par(a)lamentar, animada pelo apoio dos media a grandes manifestações, protagonizadas por grupos sem projeto de contestação ou de organização, evidenciando assim, o seu claro objetivo de diluição do descontentamento popular; e, com a presença de obscuras figuras (“Geração à Rasca” e “Que Se Lixe a Troika”) a que a pobre imprensa portuguesa não regateou apoios.

Assim, um PR marcadamente reacionário (antigo primeiro-ministro de um governo PSD) juntou-se a um governo de coligação PSD/CDS, chefiada por sociopatas como Passos e Portas, à frente de um leque de mediocridades (Relvas, Albuquerque, Mota Soares…). A dívida pública subiu em flecha[3], os salários reais tiveram grande quebra, ao contrário do desemprego que subiu; o Tribunal Constitucional não esteve isento, e foi iniciado um programa de venda de bens públicos juntamente, com a entrada de fundos do BCE/FMI no âmbito de um plano espartano para colmatar o deficit e que se veio a chamar, popularmente, “plano da Troika”.

No sector financeiro aumentou em muito o domínio do capital estrangeiro e, em 2014, deu-se a falência da joia da coroa da banca “nacional” – o BES - num processo rocambolesco que continua, com pesadas sequelas para o erário público, seis anos depois da falência.

Finalmente, Marcelo Rebelo de Sousa chegou a PR (2016) depois de muitos anos como entertainer televisivo, mostrando-se um verdadeiro e ubíquo papagaio, ao contrário da figura de tartamudo, do seu antecessor. Nos anos 80 foi deputado e membro do governo e, em 1990, perdeu a eleição para presidente da Câmara de Lisboa, apesar de um mediático mergulho nas águas poluídas do Tejo; e, chegou a presidente do PSD em 1996/99.

Tudo indica que manterá o seu estilo asfixiante de verbo fácil para todas as circunstâncias, de viagens constantes para se mostrar ao povo, não precisando de grande esforço – para além do aproveitamento da crise pandémica, para estar sempre ao lado do governo para anular a concorrência e garantir a reeleição em 2021. O atual primeiro-ministro poderá apresentar-se como seu sucessor quando Marcelo findar o seu segundo mandato, em 2026 para a manutenção da tradicional transição entre Dupond e Dupont.

3 - O  crescente desinteresse pela eleição presidencial… e não só…

Os dados abaixo contemplados e várias vezes analisados neste blog[4] sobre os resultados das várias eleições revelam uma participação efetiva em evidente decrescimento. Isso constitui um óbvio sinal de falta de interesse da população porque esta sabe nada resultar de substantivo das mesmas; apenas ligeiras tonalidades de “mais do mesmo”.

A análise dos resultados eleitorais para a escolha de um PR vai demonstrando paulatinamente o crescente desinteresse da plebe pelas romarias eleitorais. Tudo parece uma crescente rotina de uma figura inútil excepto para quem tem simpatias partidárias, que vota, “porque sim” ou, por irreprimível espírito de apostador. O gráfico seguinte mostra que:

·         nos dois últimos concursos eleitorais, mais de metade do eleitorado não votou e que os vencedores não chegam a captar ¼ dos votos do eleitorado total;

·         a revalidação dos mandatos presidenciais corresponde a maiores taxas de abstenção e revela o desinteresse da plebe perante factos que considera e, com razão, passeios eleitorais, folclore;

·         os votos no candidato vencedor superam as abstenções até 1991, equiparando-se em 1996 e, a partir de 2001, posicionam-se aquém, não se aproximando sequer da metade das abstenções, nos dois últimos campeonatos, ainda que com diferentes candidatos;

·         A soma dos votos dos candidatos vencidos nunca ultrapassa a fasquia atingida pelo vencedor. Mas, pode mostrar-se muito próxima, como nos casos da disputa Soares/Freitas em 1986 e, nos três concursos mais recentes em que foram eleitos Cavaco Silva (duas vezes) e Marcelo;

·         Os votos em branco ou anulados têm pouco significado, revelando que as atitudes expressas de repúdio do regime têm pouco significado; e que, sendo grande o distanciamento, nem no repúdio se manifesta;

·         Tudo isto num plano em que o regime não se mostra interessado, sequer, em organizar um recenseamento eleitoral fiável.

Distribuição dos eleitores no contexto de eleições presidenciais (%)

 


As eleições para o preenchimento de lugares na AR corroboram (v. gráfico seguinte) a situação atrás referida e, observa-se também, na relação entre os votos dirigidos a partidos que poderão encontrar-se em vias de serem ultrapassados, em próxima romaria eleitoral, por quantos não votam ou não expressam no voto uma preferência por qualquer produto partidário. 

 4 – A inutilidade de um cargo marcado por saudosismo monárquico

Já em tempos afirmámos que a CRP é excessivamente palavrosa, repleta de tautologias e detalhes que caberiam em legislação ordinária; e daí que seja das mais longas entre todos os estados-nação. Mais, não se descortina, no seio da classe política qualquer ímpeto reformador dos preceitos constitucionais; a continuidade de um regime oligárquico, conjuga-se bem com a complexidade escusada, o palavreado gongórico, formas de afastamento, sobretudo para um povo que não brilha pelos níveis de conhecimento incorporados[5].

Vejamos alguns aspetos sobre a função de PR na atual CRP.

O artº 110º define quais são os órgãos de soberania – PR, AR, Governo e Tribunais, no âmbito dos quais o PR é o único individualizado, reproduzindo, portanto as figuras reais das monarquias; embora sem um cargo vitalício mas que por hábito, vem sendo de dez anos, através de uma rotineira revalidação após o primeiro mandato.

A insistência na criação de um lugar de PR tem uma longa história, a do combate entre a democracia e os defensores do autoritarismo, no período que se seguiu à Revolução Francesa. E, nesse contexto, reproduzimos um texto elaborado há cinco anos :

… As ideias mais avançadas, de uma assembleia onde repousasse a soberania, tiveram um primeiro eco na Península Ibérica com a constituição espanhola de 1812 (chamada de Cadiz) e cuja influência se veio a observar na América Latina e na constituição portuguesa de 1822, esta na sequência da revolta liberal do Porto, dois anos antes. No Brasil, o imperador Pedro I colocou-se a chefiar o executivo numa lógica do governo forte, contida na primeira constituição do país, em 1824; era clara a inspiração francesa, desta vez reacionária, da Carta Constitucional de 1814, outorgada por Luis XVIII depois da queda de Napoleão, iniciando uma tradição ainda vigente na França de hoje, onde os presidentes detêm um poder executivo considerável. Em 1826 o mesmo imperador do Brasil, (momentaneamente como Pedro IV de Portugal) outorgou aos portugueses a Carta Constitucional de 1826, que viria a estar em vigor, com alterações, até ao final da monarquia em 1910. Aí se definia um poder moderador que, de facto se impunha ao legislativo e ao executivo e que tinha como protagonista um rei que repartia a soberania com a nação, que tinha todo o poder sobre as cortes e que ancorava o seu predomínio num recenseamento eleitoral muito restrito e na ligação à nobreza e ao clero. Na constituição republicana de 1911 o PR é pouco mais do que um símbolo da nação, no âmbito interno e externo. É eleito por quatro anos, não pode ser reeleito durante o quadriénio imediato, pode ser destituído pelo Congresso e compete-lhe promulgar os projetos de lei vindos das duas câmaras do congresso; neste campo, mesmo que se remeta ao silêncio, quinze dias passados surgirá automaticamente a promulgação. Mais sintomático da debilidade dos poderes do PR na I República portuguesa é o artº 49 que reproduzimos na íntegra “ Todos os actos do Presidente da República deverão ser referendados, pelo menos, pelo Ministro competente. Não o sendo, são nulos de pleno direito, não poderão ter execução e ninguém lhes deverá obediência.”…

O artº 115º nº1. estatui que a plebe pode ser chamada a votar num referendo, com a decisão a caber ao PR, sob proposta da AR ou do governo; ou ainda, por proposta popular dirigida à AR desde que por… “questões de interesse nacional” (nº 3), algo que só a classe política, claro está, é que tem gabarito para enxergar… E para reforçar o bloqueio oligárquico acrescenta-se a submissão à fiscalização preventiva da presidencial figura (nº 8). Até um referendo nas Regiões Autónomas é decidido pela monárquica figura de PR! (Artº 232º nº2); o reizinho da Baratária nem os trocos deixa de controlar…

Não vamos desenvolver aqui todos os termos e exigências que o regime pos-fascista colocou na CRP para castrar quaisquer iniciativas populares, dando por adquirido que o escol pensante da paróquia se reduz à classe política e aos que financiam os partidos no governo para obter a satisfação dos seus interesses; e esses, claro, não precisam de recorrer a referendos… Os ilustres escribas do enorme artº 115º tiveram um esmerado cuidado para que nenhum referendo de iniciativa popular alguma vez seja realizado.

Para além do uso do voto, não há efetivas iniciativas e menos ainda, decisões a tomar diretamente pela população. Mesmo as propostas de referendo propostas por grupos de pessoas, podem ser recusadas, alteradas, deturpadas, pela classe política através das instituições que controla.

O Título II da CRP trata especificamente do PR que, fica-se a saber pelo artº 120º, contempla abstrações ou contradições evidentes face ao texto constitucional; primeiro, o PR representa a República e garante a… independência nacional, algo que, na realidade, ninguém sabe onde está; há funções e decisões que competem à UE e à NATO; e, porque em 1976, a globalização estava numa fase embrionária, tornando a CRP desatualizada.

O artº 295 refere a possibilidade de referendo para a aprovação de tratado que vise a construção e aprofundamento da União Europeia; mas como é público, trata-se de letra morta, pois nada nesse âmbito foi validado por referendo. Da mesma forma, o Memorando da Troika, apesar da sua importância para a vida das camadas populares, não foi objeto de qualquer consulta popular.

O PR é o Comandante Supremo das Forças Armadas (artº 120º) embora a atuação destas se processe primordialmente no âmbito das operações da NATO e, eventualmente em operações de proteção civil, no âmbito do combate aos habituais incêndios estivais. Se houvesse algum espírito progressista em Portugal, as FA há muito deveriam estar extintas, integrando apenas funções no quadro de uma proteção civil, mais atuante e competente; e ainda promovendo a vigilância da ZEE, com funções de vigilância de tráficos e pesca ilegal.

Por outro lado, no contexto de uma guerra moderna, Portugal não tem profundidade para resistir a uma invasão terrestre e, as áreas insulares são demasiado pequenas para o mesmo efeito. Em suma, o PR é o comandante de umas Forças Armadas burocratizadas, sob o comando efetivo da NATO, com uma operacionalidade escassa e dependente de mercenários, contratados a prazo. A proporção entre oficiais e não oficiais é completamente disparatada.

O Artº 126º nº 1, refere que será eleito como PR “o candidato que obtiver mais de metade dos votos validamente expressos, não se considerando como tal os votos em branco”. Mesmo admitindo utilidade ao cargo, mais ajustado seria a representatividade do PR ser medida no contexto do eleitorado total; e não, como acontece nos pleitos mais recentes, os ungidos como pais do povo, se pautem por pouco mais de 20% do eleitorado (ver gráfico mais acima). Ora, não existindo um limite mínimo, abaixo do qual a representatividade não se verifica, está no terreno a possibilidade de uma eleição validade apenas com a votação dos elementos da classe política e dos amigos e familiares dos candidatos. Esta questão não é colocada pela classe politica porque não lhe é, de todo conveniente, que o seu caráter oligárquico seja posto em causa.

O Artº 130 nº 4. é curioso ao separar a idoneidade do PR em dois campos – o do exercício do cargo e o exterior ao cargo; a idoneidade torna-se dependente da cor do chapéu… Assim, se um PR é acusado de negócios imobiliários privados escusos, por exemplo, as suas responsabilidades ficam suspensas até ao fim do mandato; e, não é claro se essa suspensão transita para o período de um segundo mandato, caso em que haverá todo o tempo pela chegada da prescrição.

O PR é substituído, quando necessário, pelo Presidente da AR (artº 132º) o que coloca em evidência que a existência do segundo pode obviar, claramente à existência de um PR como defendemos, anos atrás.

O artº 133º enumera as competências do PR face a outras instituições. Vejamos o Conselho de Estado oriundo de um medieval Conselho Régio e incorporado na atual CRP, para consulta do PR de serviço.

Uma das funções do PR consiste em presidir ao Conselho de Estado para aconselhamento do próprio. É constituído, na sua grande maioria por gente ligada a partidos – atualmente, 18 em 20 conselheiros, sendo os dois não-mandarins, Eduardo Lourenço e António Damásio. Seis dos seus membros têm lugar por inerência de funções (Presidente da AR, o Primeiro-Ministro, o Presidente do Tribunal Constitucional, o Provedor de Justiça, os Presidentes dos Governos Regionais) e três são ex-PR. Inclui ainda 5 pessoas escolhidas pelo PR de turno e outros cinco escolhidos pela AR, de acordo com a proporcionalidade ali desenhada, entre os partidos.

O PR nomeia e exonera os Representantes da República para as regiões autónomas sendo estas o único caso de aplicação da regionalização que o regime incluiu na CRP e que, de todo, não pretende instituir de modo generalizado a todo o território. Trata-se de uma excepção que vem dos tempos do fascismo quando se falava de Portugal e Ilhas Adjacentes, uma designação que remontava à Constituição de 1838. Entretanto, em 2004 extinguiram os cargos de “ministro da República”, um género de fiscais do governo nacional para os povos dos arquipélagos que, precisariam de quem zelasse por eles. Como convém à lógica burocrática de um regime corrupto em terreno empobrecido, foram criados os cargos de Representante da República para cada um dos arquipélagos. Mudam-se as moscas…

O artº 225º e seguintes estatuem o regime político-administrativo dos Açores e da Madeira e ancora-se nas “características geográficas, económicas, sociais e culturais” (nº 1) que, obviamente também existem no território continental mas onde não merecem tal especificação. O nº 2 do mesmo artigo refere que a autonomia visa a “participação democrática”, algo que não é referido como aplicável à população do Continente onde, certamente não é preciso autonomia já que a participação democrática será … intensa e extensa (?). O reacionarismo, a cupidez e a ignorância são a imagem de marca da classe política.

Como não há uma regionalização a sério, mesmo que esteja contemplada na CRP desde a sua instituição e, mesmo que Portugal seja um dos países mais centralizados da OCDE, o regime tem-se escusado a aplicá-la no Continente. As Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto, criadas em 2008, afastam-se totalmente dos princípios democráticos de uma regionalização, pois os seus órgãos são preenchidos por membros das assembleias municipais (a Assembleia Metropolitana) e dos presidentes das câmaras (a Junta Metropolitana). Em 2013, com Passos Coelho, surgiram as Comunidades Intermunicipais dentro do modus faciendi habitual do regime. Obviamente, trata-se de estruturas marcadas pela presença obsessiva e oligárquica dos partidos políticos, ocupadas pelos seus mandarins locais com as receitas autárquicas e os fundos comunitários a alimentar esse grau zero de democracia.

Não há, portanto, Assembleias de caráter regional, nem governos regionais, nem legislação regional. A geografia regional no Continente terá sido iniciada pelo “luso bom aluno” no seguimento da sua aplicação no âmbito da UE; e como o seu desígnio essencial é a distribuição dos fundos comunitários, já foi objeto de várias configurações, com denominações diversas, consoante o governo de turno, com a constituição de vários conjuntos de municípios.

Em 2013 foi extinta a figura do governador civil, um tipo de representante do governo central e para a área continental que, de facto, pouco representava. Embora não haja distritos, parte substantiva da administração pública continua a estar estruturada em termos distritais; uma bagunça administrativa.

5 – Que filosofia e instrumentos para a construção da democracia?

Hoje, clamar pela aplicação da lei é, muitas vezes aceitar os termos ali colocados pela classe política, para se favorecer a si e, aos interesses que representa. A lei só vale enquanto emanação da democracia e não como instrumento de um grupo social muito minoritário e de baixo coturno.

Num regime democrático todos têm o direito de escolher e de serem escolhidos, para o desempenho de tarefas de interesse coletivo, sem a perturbadora existência de quistos oligárquicos que, para mais tendem, por axioma, a tomar-se como elite de iluminados gestores da res publica.

Neste contexto, num regime político seriamente democrático, a tomada de decisões sobre os interesses coletivos pode basear-se em pontos como os que se seguem, a partir dos quais se pode passar à criação de um modelo de representação democrático. Se assim não for estar-se-á num qualquer grau de não-democracia, a rejeitar liminarmente.

      Eleição de indivíduos e não de listas;

   Qualquer eleito só pode exercer funções num limitado do número de mandatos;

     Todos os órgãos serão coletivos, não hierarquizados, não havendo lugar à centralização de poderes numa só pessoa;

      Qualquer mandato pode ser cessado, em qualquer momento, por iniciativa dos eleitores que o outorgaram, através de referendo;

  Mais genericamente, a realização de referendos é um instrumento inequivocamente democrático e sempre disponível por iniciativa popular;

    Total ausência de mordomias e imunidades. A representação, o desempenho de funções em prol da comunidade é um dever e um direito para qualquer pessoa;

    A administração pública – a nível autárquico, regional e nacional - e o aparelho judicial são independentes do governo e escrutinados por instâncias democráticas;

     Acesso gratuito e facilitado, por qualquer indivíduo, a todas as decisões dos órgãos públicos;

     Moldura penal agravada e, sem prescrição, para casos de corrupção ou de actos danosos.

Este e outros textos em:

http://grazia-tanta.blogspot.com/                               

http://www.slideshare.net/durgarrai/documents 

https://pt.scribd.com/uploads



[1] Que se comportam como virgens ofendidas no âmbito do caso de Rui Pinto ou, que recolhem a um rápido recato quando da divulgação das manobras financeiras de Isabel dos Santos

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