quarta-feira, 28 de outubro de 2020

O sistema financeiro, o primeiro ditador global - 1

 

Os efeitos do capitalismo resultam da sua lógica de crescimento infinito para o valor criado, tomando a produção de bens e serviços úteis para a Humanidade como subsequente e não o objetivo central. No topo das decisões pairam malfeitores inteligentes e imbecis ambiciosos cujo único desiderato é criar valor, no caso dos chamados empresários ou, elevar o PIB no caso das classes políticas.

Sumário

1 - A afirmação de um Big Brother

2 - Crédito total dirigido ao sector não financeiro (% do PIB)

3 - Crédito total concedido ao sector público (% do PIB)

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1 - A afirmação de um Big Brother

O sistema financeiro como elemento dominante no capitalismo atual, aproveita o caráter imaterial da informação que utiliza e compila, divulgando-a com grande atualidade, sem contudo entrar em grande detalhe quanto aos seus atomizados dependentes - as empresas, sobretudo pequenas e médias e, as famílias, os indivíduos. É o BIS – Bank of International Settlements que se encarrega dessa função agregadora, por países e grupos de países, como a Zona Euro ou o G20.

Obviamente, numa escala global, mesmo que composta por diversos grandes poderes, uns mais autónomos que outros, instalados no seio de grandes rivalidades, esses poderes não deixam de competir, de se digladiarem, de se concertarem, no âmbito de geografias variáveis de poder.

A volatilidade dos mercados financeiros cruza-se com a rapidez com que as transações são feitas; o carácter global da sua atuação torna-o conhecedor do património, dos rendimentos, das transações e consumos, do local de trabalho e de habitação, de deslocações e viagens, num grau de detalhe para além do que possamos imaginar. Por outro lado, a promíscua ligação com os aparelhos de Estado permite, ao sistema financeiro e aos poderes estatais terem um conhecimento fino sobre as nossas vidas.

A computação quântica irá permitir, com grandes economias de custo, a armazenagem, o tratamento e o cruzamento de dados, de quantidades inauditas de informação, num tempo muito reduzido e um custo muito baixo. E vai juntar-se-lhe um outro grande salto em frente, a abolição do dinheiro físico (eventualmente em 2023, na Zona Euro). O dinheiro, nas suas muitas formas de apresentação física é algo que tem existido, sob diversas formas, desde a mais remota antiguidade, para facilitar as trocas; a sua abolição, constitui um desnudar nunca visto por parte dos Estados, do sistema financeiro, dos gigantes tecnológicos especializados na recolha de informação detalhada sobre as pessoas (Google, Facebook…) e dos Big Data. O plano que o Google pretende executar em New York, em harmonia com Andrew Cuomo, configura-se com digitalização, teletrabalho, atomização, empobrecimento, ausência de direitos; tudo devidamente monitorizado, quer em gastos, quer em gostos, contactos e trocas de informação, um plano, recentemente bem escalpelizado por Naomi Klein.

No capitalismo, o dinheiro é o sangue que circula nas suas veias - in natura (moeda e notas) ou sob a forma virtual enquanto depósitos, ações, obrigações e esses elementos virtuais chamados derivados. Num futuro próximo, todos os registos de rendimentos, aquisições, doações e todas as transações em que participarmos, passam por um cadinho chamado sistema financeiro. Este, por seu turno, irmanado com os Estados e, monitorizando as classes políticas, facilitará o acréscimo da punção fiscal sobre o trabalho, como pagamento, como prémio, para as intervenções estatais na pacificação da plebe, no âmbito do trabalho; ou, do desmantelamento de qualquer contestação, com uma eficácia muito superior à atuação das oposições políticas, já hoje, em grande parte, mero folclore. Quanto aos dados pessoais, o seu grau de atualização, em termos reais e históricos, serão usados, indistintamente pelo sistema financeiro e pelos próprios entes estatais que, hoje, em muitos casos, gastam recursos em bases de dados, demasiadas vezes mal construídas e desatualizadas.

No caso da Europa, provavelmente, não haverá uma substituição integral da moeda física que se conhece, reconhece Christine Lagarde, presidente do BCE. Em julho do ano em curso, o Banco de França, escolheu entre outros candidatos, a Accenture, o HSBC (acrónimo de Hong Kong and Shanghai Banking Corporation) e um dos principais bancos mundiais e ainda, a Societé Generale para uma experiência de uso de um euro digital. Esta aparente liderança do Banco de França materializou-se pouco antes num teste positivo de um euro digital numa blockchain. Sabe-se que a Grã-Bretanha, pos-Brexit também está a estudar a digitalização da moeda e que a Associação Bancária Italiana pretende aceitar o euro digital.

Configura-se mais um passo na passagem à realidade do imaginado por Orwell há várias décadas… inspirado num fino democrata chamado Stalin, o grande artífice do capitalismo de estado que, respeitosamente, desenvolveu as teses de Lenin, confesso admirador do taylorismo e do fordismo, formas “científicas” de organização do trabalho, de aumentar a sua produtividade e o quinhão de valor disponível aos capitalistas. No capitalismo, quanto mais concentrado e totalitário é o poder, mais se reafirma o papel abstrato do trabalho, apenas como gerador de valor, independentemente de o produto ser uma camisa, um televisor ou um avião de guerra. A produção de bens ou serviços, visa a reprodução do capital investido enquanto os bens produzidos constituem apenas meios para aquele fim. A sua utilidade para as pessoas, não é fulcral, é acessória, segue atrás da necessidade do capital para a sua acumulação até ao infinito. E se o planeta for insuficiente para conter a gula do capital… tanto pior para o planeta.

A força política e económica dominante hoje, não se trata de um estado-nação com fronteiras guardadas e polícias em todos os cantos ou, detentor de enorme poder militar; trata-se de uma entidade compósita, não estatal, não-nacional, que estabelece um discreto mas omnipresente super-poder, global, tentacular, com todos os poderes sobre os humanos – e até sobre a grande maioria dos estados-nação que funcionam como zelosos intérpretes e executores das ações inerentes aos interesses do sistema financeiro. Esse zelo é da competência das classes políticas que empreendem constantemente um mau teatro, lutando os seus membros por um lugar nesse poder global. E não é preciso ter grande craveira intelectual ou competências técnicas; basta saber como agradar a quem manda, sendo fácil encaixar um tal Durão Barroso nesse perfil.

O sistema financeiro tem vindo a aumentar muito a sua discrição, proporcionalmente ao seu poder. Décadas atrás, em cada esquina estava uma loja aberta ao público, onde se procedia a operações de crédito, depósito e levantamento de dinheiro em conta, sob a forma presencial; tudo, porém, num contexto marcadamente nacional. Ainda antes da internet, surgiram pontos de levantamento de dinheiro, sem uma ida a balcão bancário, a partir da posse de um cartão personalizado com um chip para o efeito, oferecido pelo banco e que mais tarde, viria a ser objeto da cobrança de uma comissão anual.

À medida que se foram desenvolvendo as capacidades de armazenamento e trânsito de informação, mormente de depositantes, devedores, especuladores e vigaristas, os bancos foram perdendo notoriedade nas ruas e ganhando poder como fornecedores de crédito, capturando indivíduos e empresas através de crescentes valores em dívida; e esta, vem inundando e manietando os Estados, que abandonaram a escola, o transporte e a habitação à gula de empresas privadas. E, em paralelo, o sistema financeiro vem recolhendo informação sobre as populações em total promiscuidade com as bases de dados estatais.

Deter informação sobre o mundo circundante, mormente sobre as possíveis ameaças daí provenientes foi sempre o instrumento para a procura de uma vantagem em todas as épocas, um instrumento de poder - em tempos de condados, ducados e reinos, como dos estados-nação subsequentes. Os magnatas da transição da medievalidade para a idade moderna emprestavam dinheiro às monarquias mas não se constituíam em sistema financeiro pois a criação de dinheiro cabia aos reis e aos embrionários estados-nação que sabiam como o multiplicar, falsificando-o sempre que necessário aos seus desígnios, através da redução do teor em ouro ou prata.

Surgiram os bancos centrais e os privados para acompanhar o grande desenvolvimento do comércio colonial, do tráfico negreiro, da guerra e da industrialização, alargando a monetarização das economias nacionais. O sistema financeiro acolheu os capitais resultantes da pilhagem, internacionalizou-se, tornando-se elemento incontornável na vida de estados-nação, de aparelhos de estado, de empresas e indivíduos. Mais recentemente, a criação do euro foi um elemento decisivo na integração (desigual) entre a maioria dos estados-nação da União Europeia, com a subalternização dos velhos bancos centrais nacionais, tornados dependências do BCE, curiosamente com sede em Frankfurt, no estado-nação que se tornou a âncora da União Europeia, mormente após a saída da Grã-Bretanha.

Os estados-nação foram desenvolvendo e aprofundando parcerias entre si, nos mais variados domínios – transporte, comércio, turismo, migrações, educação, assuntos e intervenções militares… para além da integração monetária, um elemento decisivo para a integração económica e política. Por outro lado, a informação acumulada no sistema financeiro e os seus meios técnicos de suporte é um ativo essencial; a dependência de Estados, empresas e particulares face ao crédito oferecido, sem grande parcimónia, pelos sistemas financeiros, ancora hábitos consumistas, endividamentos pouco racionais ou com amortização distribuída por dezenas de anos, com garantias pessoais e materiais para casos de incumprimento. Os perigos que o sistema corre prendem-se com a contradição entre o volume do crédito concedido e a precariedade dos devedores, mormente perante situações de conflito ou crises provenientes do próprio sistema financeiro, como aconteceu em 2008; e que, pela sua dimensão exigiu a intervenção dos Estados, aumentando substancialmente os seus graus de endividamento e como crónicos utilizadores da punção fiscal, ordinária ou extraordinária, exercida sobre os povos – para evitar maiores perdas para o sistema financeiro, globalizado, embora não uniforme nem com uma direção piramidal.

O objetivo central do sistema financeiro é o crescimento do volume de capital; e a sua receita é gerar capital a partir do nada. O balanço da Reserva Federal dos EUA era em dólares, 12*10^11 em 31/8 2008; 49*10^11 em 31/12/2019 e 70*10^11 em maio último. Na Zona Euro os elementos correspondentes eram, em euros, 4692*10^9 em 28 de fevereiro e 6705*10^9 em 2 de setembro.

Todos estes capitais reclamam uma remuneração. E são os Estados, através das classes políticas, monitorizadas no topo pelo sistema financeiro, que se encarregam de apresentar as “guias de pagamento” junto da população do planeta – sob a forma de austeridade, aumentos de impostos, desemprego, cortes nos direitos… mantendo para grande escândalo oculto, jornadas de trabalho iguais ou maiores do que há cem anos, um tempo em que os trabalhadores lutavam pelas oito horas de trabalho.

2  - Crédito total dirigido ao sector não financeiro (% do PIB)

Vamos observar, em seguida, várias séries estatísticas relacionadas com o crédito. Primeiro, para alguns países europeus e para o conjunto de todos os que têm o euro como moeda própria, para o período que se estende de 1995 (ainda sem o euro em uso) a março do ano corrente, no dealbar da crise do coronavírus. Em segundo lugar, observaremos a evolução para grandes agregados económicos e populacionais - Zona euro e G20 - e as duas maiores potências económicas – China e EUA.

Entre os países considerados, há a observar vários comportamentos no contexto da globalidade do crédito concedido ao sector não financeiro; isto é, às famílias, aos Estados e às empresas produtoras de bens e serviços.

Dois casos merecem particular atenção. O português e o alemão.

O crédito concedido pelo setor financeiro em Portugal, no período 1998/2012 passou de 1.8 para 3.6 vezes o valor do PIB e, cuja responsabilidade recai, essencialmente, nas políticas de crédito (se existentes) emanadas pelo partido-estado, PS/PSD que esteve sempre no poder, naquele período como em quase toda a vida do atual regime pos-fascista. O que sobressai, são os níveis muito superiores à média da zona euro e dos outros países referenciados.

A intervenção da troika e o afundar do sistema financeiro provocaram uma enorme descida do crédito concedido, nos últimos oito anos, com os níveis atuais próximos dos observados em 2008 (300% do PIB); e uma recapitalização dos bancos a partir do seu domínio por capitais estrangeiros, para além daqueles que foram extintos ou que se arrastam numa longa e cara agonia, nomeadamente o banco a que chamamos polinómio – BES, Banco Bom, Banco Mau,  Novo Banco - entregue a um fundo abutre e com financiamentos públicos.

No caso alemão, observa-se uma grande estabilidade na proporção do crédito concedido a famílias, estados (central ou federados), empresas produtoras de bens e serviços, tendo como referência o PIB. Em todo o período, o crédito concedido atinge um máximo de 200% do PIB, em 2010 e um mínimo de 177.5% em 2018. 

 

Todos os restantes países mantêm estratégias de acentuado crescimento do crédito, ainda que em patamares diversos. A França manteve uma grande regularidade no crescimento do indicador em todo o período considerado, enquanto todos os restantes procederam a travagens e ligeiros retrocessos, excepto Portugal, como referimos atrás e, Espanha. Salienta-se o enorme crescimento relativo do endividamento grego, em 2011/13, com uma quebra no período anterior e uma grande estabilidade depois de 2013; o que teve, como contrapartida, grandes perdas nos níveis de vida e cortes fundos em salários e pensões.

Para os grandes agregados, há a notar o grande paralelismo entre a Zona Euro e os EUA, embora com algum afastamento a partir de 2012, até aos últimos tempos. Quanto à China é notório o crescimento da dívida constituída que passa de 99% do PIB em 1995 para 274.4% em março último, situando-se à frente dos restantes agregados; o desenvolvimento capitalista em ambiente fortemente concorrencial exige um elevado grau de mimetismo. Fica por saber quando começará a inflexão ou mesmo a quebra, uma vez que o consumo interno na China não poderá atingir o infinito; a exportação chinesa pode encontrar obstáculos (para além das … sanções de Trump) de pagamento por parte dos países importadores e, os vultuosos investimentos externos, mormente no âmbito das Rotas da Seda, podem encontrar dificuldades de reembolso nos países envolvidos.


 3 - Crédito total concedido ao sector público (% do PIB)

No período considerado, o crédito concedido, na zona euro ao setor público passou de 75% do PIB para o equivalente a todo o produto de todos os países do euro.

Com a excepção espanhola, até 2007 há uma grande estabilidade da parcela do crédito ao sector público no produto global, nos países selecionados, como no conjunto da área euro. Essa excepção corresponde em grande parte ao consulado do ultra-conservador Aznar (1999-2004) a que o seu sucessor Zapatero dá continuidade até 2007 iniciando-se desde então um grande crescimento da dívida do setor público a que Rajoy dá seguimento até 2014, a partir do qual estagna o peso do crédito público no total do PIB. Como é patente nas democracias de mercado, a política económica e financeira não sofre grandes alterações com a rotatividade entre um partido no poder e o seu irmão gêmeo que estiver na oposição, em gozo de férias, até se iniciar um novo período de aplicação da mesma estratégia, da mesma política económica, com novas caras. Tal é tão evidente que nem se percebe a razão de eleições e, menos ainda, a aceitação dos povos desta rotatividade de gangs corruptos. 

A partir de 2007 observa-se uma generalizada subida do crédito concedido ao setor público e que tende a estabilizar a partir de 2014, cumprida a tarefa de salvação do sistema financeiro, nas partes contidas em cada estado nacional. O período intermédio carateriza-se por grandes crescimentos desta dívida, nomeadamente da Grécia, da Itália e Portugal, para além de Espanha como referido atrás; mas situando-se os três primeiros com índices bem mais elevados de endividamento público a partir das intervenções e pressões das instituições zeladoras, mormente, FMI, BCE e derivados, UE, em alguns casos aglutinados, aqueles, sob o nome tenebroso de troika.

Nos últimos anos, mostra-se um quadro de regularidades. Os mais elevados endividamentos públicos registam-se na Grécia e na Itália que têm essa tradição; a que se juntou Portugal que, em 1998, com a Alemanha, detinha o endividamento público mais baixo no quadro. O caso inglês, cujo neoliberalismo cedeu à necessidade de acorrer ao apoio do seu sistema financeiro mostra, em 2014, um endividamento quase triplo do registado no princípio do século.

A França mantém um lento crescimento do peso da dívida do seu sector público, sem variações bruscas. Por seu turno, a Alemanha inicia o período em análise com um endividamento público comparável ao português (em termos de percentagem dos respetivos PIB’s, entenda-se), atinge um máximo de 87.6% em 2010 e decresce em seguida para se situar em 2020 com níveis pouco superiores ao registado há 22 anos. Para quem apreciar a variedade… há muito por onde se possa escolher…

Para os grandes agregados económicos ou, para as duas maiores potências, regista-se um lento e suave crescimento do endividamento público, se se excluir o período de turbulência que se seguiu à crise aberta em 2007. A Zona euro, após um período inicial de grande estabilidade do endividamento público, aquém dos 80% do PIB, inicia-se em 2008 um tempo de subidas regulares do endividamento que atingiu o seu máximo em 2014, estabilizando em torno da dimensão do PIB desde então.

Os EUA mantêm valores semelhantes aos da Zona euro a partir de 2007, mostrando um grande crescimento do endividamento público comparativamente ao período anterior à crise dos subprimes.

Finalmente, a China, nos 25 anos contemplados no gráfico, faz evoluir o seu endividamento público muito lentamente, de 21.2% para 58.4% do PIB, com alguma aceleração nos últimos anos. Porém, o seu grau de endividamento é manifestamente inferior ao da concorrência ocidental, aqui representada pela UE e, pelos EUA.


 (continua)

 

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