Convencer os capitalistas a abandonar a lógica do crescimento
que alavanca a formação de lucros exigiria deles uma propensão para
considerarem o hara-kiri como uma oportunidade de negócio
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Sumário
A – A estrutura e a atuação do capital
1 - Objetivo essencial
do capitalismo – A acumulação de capital
2 - Principais
instrumentos da acumulação capitalista
3 – Efeitos colaterais
do modelo de acumulação de capital
B - A insuficiência de qualquer abordagem parcelar do
capitalismo
A – A estrutura e a atuação
do capital
O capitalismo aprecia lucros, acima de tudo; e para os garantir
atende a todos os meios de os conseguir, avaliando os custos que tem de
incorrer para o efeito, procedendo tecnicamente ao que se chama análise
custo-benefício.
Essa análise cinge-se a uma abordagem meramente técnica e
contabilística, no caso de pequenos negócios. Isso já não acontece quando se
trata de grandes negócios, envolvendo vultuosos meios financeiros, humanos e de
capital; aí, além daquelas abordagens, triviais, são enquadradas as variáveis
envolventes, como as económicas, as sociais, as políticas, as ideológicas e,
mais recentemente, as ecológicas.
Vejamos de seguida, um ensaio de definição da organização global
do capitalismo
1 -
Objetivo essencial do capitalismo – A acumulação de capital
- Essa acumulação alimenta-se da produção de bens e serviços, para consumo ou investimento, tendo como base o trabalho humano;
- E, sob a forma de especulação no mercado financeiro, com base em decisões tomadas por algoritmos.
2 - Principais instrumentos
da acumulação capitalista
- O consumismo é captura psicológica de massas, é um vício, uma
adição que alimenta o “mercado”. Essa captura torna as próprias vítimas do
capitalismo em interessados na sua continuidade;
- O endividamento é uma alavanca do consumo e para o comprometimento de rendimentos futuros. Por seu intermédio, o sistema financeiro apossa-se dos salários e dos bens das pessoas; garante uma fatia da carga fiscal aplicada pelos governos sobre a multidão; e condiciona ad aeternum as finanças públicas através da dívida:
- Os gastos militares animam a atividade económica dos países produtores; são elementos de contenção de intervenções externas, embora na generalidade pouco possam conter; ou, são instrumentos de intervenções no exterior na base de um ilegítimo direito de intervenção. Em todos os casos suportam parasitárias castas militares;
- As transnacionais, o sistema financeiro e o capital do crime entrelaçam-se numa matriz complexa e mutável de conluios e conflitos, cujos fins justificam todos os meios, incluindo um cortejo enorme de disfunções e sofrimento nas relações entre os povos e no seio de cada um destes. São os elementos estruturantes da reprodução de capital;
- Os estados-nação são unidades geográficas de divisão e gestão diferenciada do rebanho humano, uma herança do capitalismo colonialista e concorrencial dos séculos passados, atualmente enquadrados, na sua grande maioria, pelas transnacionais e pelo capital financeiro que estruturam o mundo globalizado de hoje. É no seu âmbito que as classes políticas nacionais procedem à gestão de proximidade da mansidão dos povos;
- Várias organizações internacionais funcionam como gestores setoriais de nível planetário – OMC. FMI/BM, OMS, UNCTAD… - ou associando vários países, num âmbito regional alargado - OCDE, UE, NATO, ASEAN, OCX… Claro que nessas organizações se evidencia a hierarquia existente entre os estados-nação, muitos dos quais não têm sequer capacidades de acompanhamento dos assuntos, por dificuldades financeiras ou técnicas, limitando-se a votar ao lado dos mais fortes, por convicção ou compra de voto;
- As classes políticas nacionais são as zeladoras dos interesses dos capitalistas nacionais e da sua integração e compatibilização face ao capital global; hierarquizam os interesses dos grupos nacionais que bem sabem como cooptar ou corromper membros influentes das classes políticas. Em regra, apresentam-se divididas entre governo e oposição, um género de Dupont e Dupond mas, com mais aptidões para o teatro. Em fora como o Bilderberg são chamados anualmente a prestar provas os mandarins locais tomados como promissores candidatos a cargos supranacionais;
- As ideologias nacionalistas, patrioteiras ou xenófobas atravessam os espetros políticos nacionais como instrumentos de divisão, diversão e controlo dos povos. O inimigo torna-se a globalização – embora já tenha séculos e as suas crises de depressão tenham promovido nacionalismos e guerras apocalíticas. Os capitalistas nacionais ficam isentos de responsabilidades e a culpa das desgraças é o Outro – imigrante, refugiado, islâmico, negro, estrangeiro; um discurso que inflama gente perdida num mundo que não entende, que a tv não explica;
- Os grandes media conjugam várias caraterísticas - manipuladores de opinião, por ocultação ou deturpação de factos, propagandistas de futilidades sociais, desportivas ou políticas e de tradutores dos grandes media globais. Essas qualidades empurram as pessoas para as redes sociais onde, no seio de uma grande vacuidade é possível alguma expressão livre, com uma margem menor quanto a censura; embora a contrapartida seja a exploração massificada de dados. Como pertencentes a grupos empresariais detêm relações íntimas com os grandes negócios e as classes políticas;
- A autoridade estatal desenvolve atividade no âmbito da repressão policial ou judiciária, socialmente muito discriminatória e ainda, através da via fiscal no contexto da redistribuição regressiva do rendimento. É o Estado que procura conjugar benefícios que atendam à competitividade dos capitalistas com uma carga fiscal que se torne compaginável com as capacidades dos sindicatos para a contenção social; e ainda que proceda à produção legislativa que forneça de modo discreto, elementos favoráveis ao empresariato, à movimentação de capitais, à exploração dos trabalhadores;
- A simbiose entre o Estado e o capital, mormente financeiro, corresponde a uma captura do primeiro pela lógica do segundo; são os casos dos sistemas de saúde, educação, ação social, segurança social, do abandono de uma política de habitação, dos transportes públicos, das vias de comunicação, do abastecimento público de água, eletricidade, comunicações, etc;
- O sistema educativo – público ou privado – encontra-se mercantilizado, parcelarizado em extremo (ao contrário do que significa universidade) mormente a nível superior. É o grande doutrinador do individualismo, da competição e do empreendedorismo tecnocrático, da preparação para o “mercado” de trabalho, para a máquina burocrática das empresas ou das instituições públicas e ainda para enformar a classe política;
- A democracia de mercado vulgarmente conhecida por representativa (embora só os gangs partidários estejam representados) não passa de um placebo de uma real democracia. Estabelece um fosso entre os eleitos e os eleitores, colocados de fora de qualquer possibilidade de representação; eterniza os membros da classe política como “representantes”; exclui, na realidade, qualquer referendo ou outra iniciativa popular, sobretudo para a retirada de mandatos a quem demonstre incapacidade ou comportamentos indignos.
3 – Efeitos colaterais
do modelo de acumulação de capital
- Desenvolve-se uma luta acerba – comercial, política, militar – entre empresas e Estados, pelos recursos materiais do planeta, como pelo controlo dos ditos mercados consumidores;
- Face aos danos ambientais motivados pela competição inerente aos grupos capitalistas e aos seus Estados, revelam-se duas atitudes por parte de capitalistas e das classes políticas – a da gestão mercantil desses danos, como mais uma oportunidade de negócio ou, a da sua efetiva desvalorização enquanto problema, como se observa pelas considerações de Trump e Bolsonaro;
- Na ausência de uma narrativa política globalizante e suficientemente consensual de superação do capitalismo, tornam-se dominantes fórmulas tecnocráticas ou politicamente inócuas de encarar os problemas sociais, políticos, económicos ou ambientais; e, recentemente têm surgido narrativas fascizantes recolhidas no sótão de avós pouco recomendáveis;
- O aumento da parcela dos rendimentos nacionais embolsados pelos ricos – bem como da riqueza na sua posse - empurra as populações para dificuldades económicas que geram estagnação ou redução dos seus padrões de vida que, contudo, não têm sido origem de levantamentos populares; Perante a crise sistémica de baixas taxas de reprodução do capital é mobilizado o Estado para desempenhar um papel supletivo ou preventivo dos efeitos da desestruturação económica, social e ambiental, causados pela acumulação capitalista. Esse papel consubstancia-se ainda no apoio a grupos capitalistas, mormente bancos ou, no apoio a desempregados para que se lancem na aventura do empresariato em nome individual, que na grande maioria dos casos termina em falência, endividamento e frustração;
- O papel da propaganda promovida pelas classes políticas tem-se acentuado para gerar a mansidão da multidão – com a criteriosa utilização de instrumentos vários, como a manipulação, a ameaça e a repressão. A ideia de que os modelos em vigor - económico e político - são os melhores e os mais eficientes de todos - there is no alternative – vai vingando, ao contrário de outras épocas, dada a ausência de uma esquerda anticapitalista com notoriedade e alheia aos novelos que embrulham e indiferenciam as classes políticas;
- O magno objetivo da acumulação vem conduzindo ao afogamento da Humanidade em dívida[1] – pública ou privada – com regulares crises financeiras que a inércia dos povos permite sejam temporariamente superadas. A dívida, em geral, serve para antecipar consumos e, sobretudo, capturar os devedores; desse ponto de vista não é pagável, haja ou não pífias reestruturações. Por outro lado, as cascatas de títulos de dívida que alimentam a especulação financeira servem para esse efeito e não para serem liquidadas; até porque o devedor inicial, o real, rapidamente fica desconhecido após sucessivas titularizações;
- Parte das inovações tecnológicas visam o controlo social através da vacuidade e da manipulação – redes sociais, media, a focagem de tempo e atenção em smartphones – para além de gerar negócios impulsionadores de rápidas formas acumulação de capital; um controlo social muito mais intenso e eficaz do que no tempo em que a imprensa era dominante;
- A crescente parcela da acumulação de capital que provém dos delírios financeiros, associada aos avanços atuais e futuros na gestão da informação ou na robotização, colocam às altas esferas do capital – e os seus think tanks – a questão, a médio prazo, de uma redução drástica dos efetivos humanos.
B
- A insuficiência de qualquer
abordagem parcelar do capitalismo
Como sistema, global e integrado, o capitalismo, pode ser
observado de vários ângulos – económico, social, político, tecnológico e
ambiental, entre outros; e, devido a essas caraterísticas, qualquer medida ou
acontecimento setorial, de per si, interage com outros sectores, melhorando o
desempenho nuns mas afetando negativamente outros. A II Guerra, provocou enorme
destruição material e humana mas, daí resultaram alterações profundas, no
ordenamento global a nível tecnológico, económico, social e político. Os
celebrados 30 gloriosos anos conduziram, na Europa, à instauração do modelo
social europeu que depois foi adulterado e extinto pelo neoliberalismo, o qual,
por sua vez, gerou novos paradigmas na área laboral. O desmoronar da URSS e do seu
capitalismo de estado facilitou a integração da Europa de Leste na UE e
empurrou a Rússia para alianças estratégicas baseadas na Ásia... Contudo,
globalmente, pode dizer-se que houve apenas reajustamentos no âmbito do modo de
produção capitalista.
Outro caso de reajustamento, obviamente menos profundo e mais
estrito, é o da proibição dos clorofluorcarbonetos (CFC) e dos halons em 1987,
que contribuiu para a redução do buraco do ozono, embora o acordo para essa
supressão tenha sido facilitado porque a sua produção estava centrada uma
grande empresa, a DuPont; … e ainda porque logo se encontraram sucedâneos, não
havendo danos para o sistema capitalista. Aliás, curiosamente, o CO2 ajuda a
aumentar o ozono na estratosfera ao contrário do metano, num efeito líquido que
estará em estudo.
Enquanto os grupos de contestação - ainda que com méritos
técnicos e políticos em questões circunscritas - se cingirem a abordagem
parcelares e sem um perfil estratégico, o capitalismo saberá proceder à gestão
das concessões, cooptações e repressões, necessárias e convenientes para a sua
continuidade; sobretudo, porque dispõe de vários organismos, think tanks e consultores com meios poderosos, de caráter
técnico, financeiro e de conhecimentos, capazes de proceder a sínteses,
estratégias políticas, táticas, de âmbito geográfico e social, mais específico
ou alargado, mais verídico ou mais falsificado[2].
Quanto mais circunscrita – no espaço e no âmbito - for a
contestação, mais facilitada será a repressão e mais difícil será a congregação
de apoios populares face às atitudes do poder. Se os grupos de contestação,
cada qual com uma base circunscrita de atuação - aspetos ambientais, sociais,
políticos, económicos… - se concertarem ou federarem os seus objetivos contra o
capitalismo como elemento bloqueador do bem-estar dos povos, a sua atuação
ganhará força, consistência, recursos, visibilidade e abrangência no combate.
Por outro lado, essa integração, pela troca de ideias e pela interação entre os
vários grupos temáticos, contribuirá para uma maior maturidade na consciência
da necessária supressão do capitalismo.
O fracasso
da luta anticapitalista – mesmo nas suas distintas áreas – está garantido enquanto
não tiver por detrás a força vital e a vontade expressa e militante da multidão
de seres humanos, despidos de complexos nacionalistas, étnicos ou religiosos;
ou ainda, se incorporarem instituições verticalizadas e autoritárias, como são os
Estados ou os partidos políticos que, aliás, estão ficando desacreditados, como
se tem observado em França na revolta dos Coletes Amarelos. Os Estados nasceram,
no dealbar do capitalismo, para dar coesão aos estados-nação, como coutadas de
restritos grupos de capitalistas, procurando vincar no “seu” povo, através da
escola e do serviço militar, a diferença e o antagonismo face aos outros povos;
fazendo esquecer que dos dois lados de uma fronteira há apenas seres humanos
com os mesmos propósitos essenciais de vida.
Assim, os estados-nação
com os seus instrumentos de repressão e saque da multidão estão sendo, na sua
maioria, subalternizados pela globalização
daí surgindo duas tendências. Uma cosmopolita, inclusiva, de cruzamento de
corpos e culturas, de construção do comum; e outra, temerosa do futuro e que se
refugia por detrás da xenofobia, da fronteira e do antagonismo face ao Outro,
sempre visto como ameaça, esperando recriar o paraíso dentro da narrativa
oitocentista de “a cada povo uma nação”.
Assim, na luta global e em todas as frentes nas quais o
capitalismo exerce o seu domínio ou influência, a supressão
daquele deverá exercer-se a partir de enxames
de redes rizomáticas, com decisão democrática, horizontal, tomada por todos,
uma vez que a existência de hierarquias e dos privilégios facilita casos de traições,
de cooptações ou conluios vindas de instituições que servem o capital –
mormente as classes políticas.
Este e outros
textos em:
[1] Como o sistema
financeiro captura a Humanidade através da dívida
Reestruturar a dívida pública nada resolve na nossa vida
[2] Como exemplo das
típicas manipulações produzidas por consultores, recorde-se, nos anos 90, que a
EDP pretendia construir uma barragem no rio Coa mas, a descoberta de pinturas
rupestres veio levantar obstáculos ao empreendimento. Expedita, a gestão da EDP
recorreu a um “reputado especialista” que negou valor histórico aos achados,
que seriam obra de pastores do século… XIX. Descobriu-se que o especialista era
um burlão e, com a mudança de governo, a construção da barragem foi abandonada.
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