Quando nos concentramos na conjuntura, nas pequenas mudanças ou
no folclore mediático encenado pelos membros das classes políticas; quando nos
focamos exclusivamente nas pequenas diferenças nos preços do combustível ou nos
rendimentos, acreditando que virá amanhã o aumento prometido no ano passado
estamos, decididamente, a ser enganados ou, melhor, a ser toureados.
Aquela atitude compreende a visão obscurecida pela estúpida
crença de que umas eleições que se seguem, onde os feitos do governo se cruzam
com as promessas cantadas pela oposição, trarão alguma coisa de substantivo
para as nossas vidas.
Nessa rotina, arriscamo-nos a morrer sem nunca termos entendido
as estratégias de que somos vítimas nem a beneficiar das promessas que nos
foram feitas durante a vida, adiadas todos os quatro anos, pelas dificuldades
da conjuntura; e morremos sem jamais alcançarmos os amanhãs que cantam, sem nos
arriscarmos a mudar as estruturas. Os cemitérios estão repletos de muitos de
quantos acreditaram nos tais amanhãs, em seguidores de farsantes à procura de
votos, daqueles que nunca fizeram nada para tirar as vendas dos olhos e menos
ainda para se apossarem do seu próprio futuro. Acomodados pela crença ou
crentes para encaixar o comodismo.
É nessa mentira, nessa obscuridade que nos querem manter. Ainda
recentemente, na paróquia lusa houve nutrida grita em torno do aumento em
alguns cêntimos dos preços dos combustíveis; porém, essa grita, com os
animadores partidários em êxtase, não deu origem a uma atitude coletiva contra
a imensa carga fiscal que recai sobre os combustíveis; como não deu origem a
campanhas de desobediência face ao ignóbil pagamento de portagens sempre que se
pretende circular em estradas mais rápidas; ou perante a ausência de
transportes; ou por um SNS cada vez mais pasto de adjudicações a empresas,
contratações de trabalhadores através dos negreiros atuais (as ETT), para além
da pachorrenta aceitação do pagamento anual de € 800 per capita, em nome de uma dívida pública tão eterna quanto, em
larga medida, ilegítima, constituída para compensar as perdas de capitalistas e
banqueiros.
Claro que a mistificação do caráter da dívida pública irmana
toda a classe política, sejam os gestores do partido-estado PS/PSD com o apoio
de um seu produto derivado de reserva, o CDS; como inclui a “esquerda” do
regime pós-fascista que aceita sem pestanejar a dívida pública como legítima,
clamando, numa atitude complacente com o capital financeiro, por uma
reestruturação[1]
que, se alguma vez se fizesse, teria um impacto mínimo.
As alterações estruturais são tão mais visíveis quanto maior for
o lapso de tempo observado. É interessante comparar a evolução dos rendimentos
do trabalho como os do capital, em Portugal, depois de 1953, a partir de quando
se encontram séries estatísticas regulares. Por rendimentos do trabalho
consideram-se os pagamentos efetuados aos trabalhadores e ainda as
contribuições patronais para a Segurança Social. Por rendimentos de capital
compreende-se o excedente bruto da produção dos serviços de habitação e ainda
os lucros distribuídos ou, os ganhos em rendas e juros, por parte de quem tem
propriedades ou capitais. Essa comparação é acompanhada por uma outra,
habitual, com o PIB, aferidor do rendimento anualmente gerado, na parte em que
é conhecido; sabendo-se que há rendimentos efetivos que escapam ao cômputo,
como aliás foi inicialmente referido pelo próprio criador do conceito do PIB,
Kuznets. Em Portugal, essa compósita gama de rendimentos não contidos na
contabilidade nacional, corresponde a cerca de 25% do referido PIB.
Para o período 1953/93 utilizámos as Séries Longas para a
Economia Portuguesa, produzidas pelo Banco de Portugal e, para depois de 1977,
os elementos constantes nos dados estatísticos correntes, presentes na página
daquela instituição. Há, assim, duas séries de dados que iremos considerar.
Dividimos aquele primeiro período de 40 anos em dois gráficos;
um, tomando como base o ano de 1953 e que termina em 1977, contendo os últimos
21 anos do regime fascista e os anos de transição para o actual regime
pós-fascista, dito de… democracia, só porque não há pide; o que
é
pouco para que se possa falar de democracia[2]. E o segundo, com o lapso de tempo decorrido entre 1977
e 1995, dentro da série estatística anterior.
1 - O período 1953/77 e o fim do regime fascista
O gráfico
abaixo (graf. 1) representa a evolução daqueles dois tipos de rendimento para o
período 1953/77 (preços correntes). Neste, como nos gráficos que se seguirão,
daremos relevância essencialmente à convergência ou à divergência entre as
variáveis, como reflexo das diferenças na afetação dos rendimentos globais
gerados pelos dois grupos sociais distintos – os trabalhadores e os
capitalistas – durante os últimos 21 anos do regime fascista e os quatro primeiros
anos do actual regime, cujo caráter reacionário e cleptocrático nos permite
dar-lhe o epíteto de pós-fascista. Procuraremos adiante uma explicação para um
maior dinamismo dos rendimentos do trabalho, comparativamente ao PIB e aos
rendimentos do capital, neste período.
graf. 1
Fonte primária: Banco de Portugal - Séries
Longas para a Economia Portuguesa
· Tomando como base o ano de 1953 verifica-se que os rendimentos
do trabalho cresceram no período 1953/77 quase 15 vezes, contra 12 e 8.5 vezes,
respetivamente, para os casos do PIB e dos rendimentos do capital; devendo
ter-se em consideração que grande parte desse crescimento é devido à inflação,
que acelera a partir de meados da década de 60 e, particularmente, após uma
sucessão de acontecimentos – a subida dos preços do petróleo em 1973, a crise
política de 1974/75 que se seguiu ao fim do regime fascista e às dificuldades
económicas nos primeiros anos da normalização pós-fascista (gráf. 2).
graf. 2
Fonte primária: Banco de
Portugal
·
Como se revela na tabela abaixo, até 1959 os rendimentos do
capital têm uma ascensão superior à marcha do PIB, bem como das remunerações do
trabalho, com poucas excepções. A partir daquele ano, o crescimento das
remunerações do trabalho, em regra, supera a evolução dos rendimentos do
capital, até ao início do actual regime político, que reverteu a situação, subalternizando
a evolução dos rendimentos do trabalho aos sacrossantos rendimentos do capital.
·
O crescimento das remunerações dos trabalhadores tende a superar
o do PIB, grosso modo, em toda a década de 60 e, depois, durante os anos
1974/75, por óbvia pressão das movimentações populares perante um poder de
estado muito debilitado. A comparação da evolução das remunerações do trabalho
com a taxa de inflação mostra ganhos relativos dos trabalhadores em todos os
anos considerados, excepto o último, 1977 – ano da primeira intervenção do FMI,
na sequência da qual surgiu, logo em janeiro do ano seguinte, o governo PS/CDS,
durante o qual foi criado o SNS, em breve desprezado, sabotado e tornado
veículo da parasitação de privados, como hoje é, escandalosamente, claro.
Variações percentuais
face ao ano anterior
1954
|
1955
|
1956
|
1957
|
1958
|
1959
|
1960
|
1961
|
1962
|
1963
|
1964
|
1965
|
1966
|
|
Remun.
do trabalho
|
7,4
|
4,1
|
5,5
|
3,6
|
1,5
|
7,6
|
6,9
|
8,8
|
6,7
|
9,3
|
9,6
|
12,3
|
11,2
|
Rend. do capital
|
13,5
|
5,2
|
18,3
|
-6,3
|
7,6
|
7,2
|
4,6
|
1,5
|
6,4
|
6,4
|
9,3
|
5,8
|
8,9
|
PIB
|
6,1
|
4,6
|
6,9
|
6,2
|
6,7
|
6,1
|
5,9
|
4,1
|
12,2
|
3,3
|
8,6
|
16,3
|
6,7
|
Inflação
|
1,7
|
-1,9
|
0,3
|
2,9
|
1,1
|
2,2
|
1,4
|
2,6
|
0,5
|
2,4
|
1,7
|
3,1
|
4,7
|
1967
|
1968
|
1969
|
1970
|
1971
|
1972
|
1973
|
1974
|
1975
|
1976
|
1977
|
|
Remun.
do trabalho
|
15,8
|
8,5
|
11,0
|
15,8
|
15,2
|
17,2
|
18,2
|
31,3
|
29,9
|
16,1
|
17,5
|
Rend. do capital
|
8,9
|
11,4
|
5,9
|
9,1
|
13,0
|
17,5
|
16,8
|
-6,8
|
15,8
|
16,8
|
33,8
|
PIB
|
12,0
|
8,1
|
7,3
|
12,8
|
15,7
|
18,0
|
18,2
|
18,4
|
15,8
|
19,6
|
28,5
|
Inflação
|
6,6
|
4,5
|
5,8
|
8,6
|
4,4
|
10,9
|
11,2
|
13,0
|
26,1
|
17,4
|
19,9
|
Chave de interpretação
Remun. do
trabalho > Rend.
do capital
|
Remun.
do trabalho > PIB
|
Rend. do capital > PIB
|
Remun. do
trabalho >
Inflação
|
· Em 1961 inicia-se a guerra colonial em Angola e, pouco depois, sucede
a perda das possessões coloniais na Índia; em 1963 a sublevação acontece na
Guiné-Bissau e em 1965, em Moçambique. Isso constituiu um bom motivo para a
emigração e fuga dos mais jovens e dos mais politizados, pouco interessados em
participar num contingente que chegou aos 250000 homens em armas e numa guerra
que não sentiam como sua. Curiosamente, o PCP não aconselhava essa fuga,
defendendo a integração nos contingentes militares e uma eventual deserção no
teatro de guerra (um verdadeiro suicídio!), numa expressão muito curiosa de
internacionalismo; que aliás mantém com a sua “política patriótica de
esquerda”…
·
O enorme contingente militar – completamente desmesurado para um
país pobre e com pouco mais de 9 M de habitantes – bem como o esforço de guerra,
promovem um aumento substancial dos gastos militares. Isso, porém não se
reflete nas contas públicas sob a forma de deficit pois Salazar sacralizava o
equilíbrio orçamental através de uma “contabilidade criativa”; considerava o
produto da emissão de dívida como uma… receita, desvalorizando o que isso
representava como responsabilidade, a constar num balanço. Esse enorme gasto
público, sem contrapartidas produtivas correspondeu a uma distribuição de
rendimento que contribuiu para incentivar uma escalada inflacionista a partir
de meados dos anos 60.
·
Por outro lado, a emigração legal referida por Joel Serrão em “A
Emigração Portuguesa”, é estável em 1955/62, entre 21300 e 27600 pessoas mas, dispara,
a partir de 1963, sabendo-se que o total dos emigrantes é de 15 a 30% superior
aos valores indicados como legais. Assim, em 1966 o número contabilizado de
emigrantes chega a 120239 e mantém-se sempre acima dos 50000 até 1973. Até à
crise que marcou o fim dos chamados 30 gloriosos anos de vigência do paradigma
keynesiano, os países da Europa Ocidental, sobretudo França, Bélgica e
Alemanha, recorreram massiva e sucessivamente à imigração de norte-africanos,
italianos, espanhóis e portugueses.
·
Esse enorme contingente de emigrantes procedia ao envio de
rendimentos, que beneficiaram essencialmente as famílias mais pobres e conduziu
a um aumento da procura de bens, serviços e gastos na construção/reparação de
casas. Esse aumento de poder de compra que não encontrava capacidades adequadas
no aparelho produtivo, contribuiu também para a inflação. A importância das
remessas dos emigrantes no rendimento disponível bruto pode observar-se abaixo
(%)
1953
|
1960
|
1965
|
1970
|
1971
|
1972
|
1973
|
1974
|
1977
|
2,5
|
4,1
|
4,4
|
8,2
|
9,2
|
9,7
|
9,4
|
8,3
|
7,6
|
·
O maior crescimento das remunerações de trabalho face aos
rendimentos do capital que se observa a partir de meados dos anos 60 não surge,
naturalmente, de um processo reivindicativo ou de uma crise política; a
incapacidade e depois a morte de Salazar não provocaram grande abalo ao regime.
Caetano, no poder, permitiu alguma reivindicação salarial a qual contribuiu
para um aumento dos rendimentos das camadas mais organizadas dos trabalhadores,
em interação com a escalada dos preços. Em 1974/75, na sequência do fim do
fascismo e perante uma grande crise do poder do estado, há mudanças
substantivas na relação trabalho/capital, a favor dos trabalhadores mas, que se
esfumam logo nos anos seguintes.
·
Em 1974/75 a entrada de gente vinda das colónias representou um
aumento populacional de umas 600000 pessoas, muitas das quais necessitadas do
apoio público, conseguido através da emissão de moeda pelo Banco de Portugal,
criando-se assim mais um impulso para a inflação.
Os últimos anos do fascismo revelam elementos que apontavam para
uma inexorável mudança; a guerra colonial era o maior obstáculo, quer a nível
interno, quer externo.
A nível interno, pelas razões atrás expendidas, mostraram-se
pouco impactantes as tímidas ou cosméticas medidas levadas a cabo por Marcelo
Caetano, englobadas no que o próprio chamou “evolução na continuidade”. A
tropa, só muito próximo do final de regime - que acabou por derrubar -
encontrou capacidade política para compreender a necessidade de encontrar um
fim para o regime fascista, como forma de se libertar de um próximo desastre
militar. E a sua típica postura elitista fê-los querer manter a população em
casa, retirando-lhe o prazer e a festa, o gozo de participar no fim do regime;
e, rapidamente apresentaram, como novos dirigentes, um punhado de generais, num
retrato de cariz latino-americano, para sossegar Washington e as capitais
europeias.
Depois da integração na EFTA, em 1959 surgiu algum investimento
estrangeiro mas, com o início da guerra colonial, Portugal foi sujeito ao
boicote e à animosidade dos países então chamados do Terceiro Mundo. Por
exemplo, o não reconhecimento da integração de Goa na Índia impedia qualquer
ligação comercial com aquele enorme país, centrando-se Portugal numa relação
com o vizinho Paquistão, em histórico conflito com a Índia, mais recentemente
por a última ter tido um papel relevante no desmembramento do Paquistão, com a
criação do Bangla Desh, em 1971.
O grande beneficiário desse boicote e do desgaste do esforço de
guerra foi a Espanha que, apesar do regime franquista, não tinha guerras
coloniais em curso e enveredara por uma certa evolução na continuidade através
de um governo ligado à Opus Dei, atraindo o investimento estrangeiro. As
diferenças espelham-se muito claramente na evolução populacional (milhares).
|
1960
|
1970
|
1980
|
Espanha
|
30455
|
33814
|
37491
|
Portugal
|
8858
|
8680
|
9766
|
Na altura, ainda muito ligado à Grã-Bretanha, Portugal viu-se
obrigado a negociar com a CEE um acordo em 1972. E entretanto, procurava
aproveitar a sua posição estratégica, criando o porto de Sines para a atracação
de navios-tanque com mais de 500000 t., uma reparação naval para os acolher e
ainda um complexo petroquímico para a venda de refinados na Europa. A
reabertura do canal do Suez, em 1973, reduziu radicalmente a dimensão
necessária dos navios e o largo investimento inerente a esta estratégia
perdeu-se em grande parte, transitando os prejuízos para o povo português, após
a conveniente nacionalização das infraestruturas (Petroquímica, Lisnave,
Setenave, nomeadamente).
Uma réplica do processo de crescimento económico que atravessou
os países da OCDE na década de 60 exigia a passagem de um capitalismo baseado
em unidades empresariais artesanais, tão ao gosto ruralista de Salazar, para um
capitalismo moderno, com forte investimento em equipamentos e conhecimento,
exigente de trabalhadores qualificados e, obviamente, mais bem pagos, no
contexto dos salários de miséria tradicionais em Portugal. Essa capacidade para
a passagem para um novo patamar de desenvolvimento capitalista, simbolicamente,
pode colocar-se em 1961, com a criação da Siderurgia Nacional e da Lisnave, que
se viriam a juntar ao antigo e diversificado grupo CUF. Simbolicamente, na
inauguração da primeira, o ministro Ferreira Dias, um entusiasta da
industrialização diria “país sem siderurgia, não é um país, é uma horta”.
Assim, de 1960 para 1967 os trabalhadores na indústria transformadora passam de
680.7 mil para 903 mil, aumentando apenas 77 mil até 1974.
Uma indústria moderna exige gente qualificada e o fluxo
crescente de emigração constituía um elemento de concorrência pouco habitual
para a maioria do empresariato luso, beneficiário do corporativismo, do
condicionamento industrial, da mãozinha do estado… como hoje; e, na frágil
camada de trabalhadores qualificados, uns eram repelidos para o exterior para
fugirem à guerra colonial e outros emigravam sobretudo para a Alemanha,
atraídos por melhores condições de vida e maior respeito pelos direitos. E daí,
aos capitalistas só restava aumentar as remunerações, encolhendo nos
rendimentos do capital.
A crise ocidental no princípio dos anos 70, iniciada com a
desvalorização da libra em 1968, o fim da convertibilidade do dólar em 1971, a
enorme subida dos preços do petróleo em 1973 e, politicamente, o golpe fascista
no Chile, apadrinhado pelos EUA, significam a passagem do modelo keynesiano
para o paradigma neoliberal; embora os grandes emblemas da aplicação do
neoliberalismo – Thatcher e Reagan - só tenham chegado ao poder em 1979 e 1981,
respetivamente. E essa passagem, que coloca um fim aos “30 gloriosos anos” de crescimento do pós-guerra, reduz
substancialmente a procura de trabalhadores imigrados na Europa Ocidental.
próximo
capítulo “Da primeira intervenção do FMI
ao cavaquismo (1977/95)”
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