Unamuno dizia
que “o povo português tem, como o galego, fama de ser um povo sofrido e
resignado que aguenta tudo sem protestar mais que passivamente”. A explosão
social de 1974/75, liberta do espartilho estatal confirma o que disse o mesmo
filósofo “no entanto com povos assim, há que ter cuidado. A ira mais terrível é
a dos mansos”.
A soberania
verdadeira verifica-se quando a ira sai à rua para varrer capitalistas,
criadores de atraso e pobreza e despejar a classe política na mesma lixeira da
História.
Sumário
1
- O que é a soberania?
2
- Traços condutores de uma estratégia defensiva
3
- A arguta avaliação de David Ricardo
4
- As invasões francesas e a separação do Brasil
5 - Monarquia liberal, ma non tropo e tutelada
6 - Um século de corrida às colónias
+++++ ||||||| +++++
1
- O que é a soberania?
Há
quem considere como essencial a soberania nacional. Quem assim pensa está
agarrado ao mundo erigido pelas forças do capitalismo no século XVII, quando as
burguesias nacionais procuravam aprisionar a população de um território tomado
como sua propriedade, para a vocacionar para a obediência no trabalho e na
guerra.
Essa
ideia correspondia a que os trabalhadores e os pobres de um estado-nação
deveriam esforçar-se para o engrandecer, embora isso apenas correspondesse ao
enriquecimento dos capitalistas, das famílias reinantes e suas clientelas.
A
constituição do capitalismo global de hoje, significa:
· a minorização ou
anulação das fronteiras para a circulação de capitais, mercadorias, pessoas
(estas… com restrições desde que se trate de imigrantes ou refugiados) e da
informação;
· a transformação
dos velhos capitalismos nacionais num bolo global – Imperium - ou, em estruturas decadentes e irrelevantes, se apenas
centradas no seio dos estados nacionais, saudosos dos velhos tempos das
rivalidades inter-imperialistas;
· a mobilidade do
trabalho, a formulação deste como interação de micro-decisões, geograficamente
dispersas e integradas através de redes, numa estrutura produtiva global;
· a necessária
resolução de vários problemas muito para além do quadro estreito dos
estados-nação – as alterações climáticas, as redes de transporte, a gestão das
bacias hidrográficas, a gestão do espaço aéreo ou dos recursos do mar, a
articulação do espaço informacional, as migrações e a miscigenação, o impacto
das epidemias ou dos desastres naturais, a própria produção de bens e serviços.
Daí resulta a multiplicação de instituições de caráter global – ONU, FMI, OMC,
OMS, UNCTAD, Amnistia Internacional, Transparência Internacional, etc. que
revelam abordagens muito para além de fronteiras nacionais; muitas são
instituições intergovernamentais minadas pelos egoismos nacionais mas, muitas outras são provenientes da cidadania,
onde a origem nacional pouco conta.
Se
as multinacionais ou o sistema financeiro, por inerência cuidam da gestão do
capitalismo global e das suas instituições, as abordagens ancoradas na
soberania nacional também não colocam em causa o capitalismo; apenas o
pretendem inscrever num espaço circunscrito, pretensamente higienizado, limpo
de estrangeiros (excepto se forem turistas endinheirados ou investidores),
propriedade de uma seita unida por uma duvidosa consanguinidade, com a criação
de uma cosa nostra. Pretende-se, como
virtuosa para a população, a existência de setores nacionalizados, sistemas
financeiros domésticos, moeda própria, diferenciação salarial, desde que daí
resulte o fortalecimento do capitalismo de origem doméstica, em prejuízo do
capital global ou proveniente de um outro país – mesmo que daí resulte pobreza,
repressão e a alegria de poder mirar o campanário da aldeia com salários de
miséria.
Por
axioma implícito, os soberanistas consideram que os capitalistas pátrios são
melhores que os capitalistas de outras nações; o que está muito longe de
corresponder à realidade mas, que vem servindo como panaceia contra as
dificuldades promovidas pelo capitalismo global, sobretudo depois da crise de
2008; e, no caso da Europa, como contraponto à atuação das instituições da UE,
oligárquicas e claramente favorecedoras do sistema financeiro global, amarrando
os povos ao pagamento de rendas eternas, através da dívida.
O
soberanismo normalmente gosta de um capitalismo de estado ou fortemente
ancorado no investimento público – keynesianismo – que, num contexto de grande
interação global e forte endividamento, está longe de poder produzir os efeitos
que o New Deal teve nos anos 30… e que só se consolidaram com a produção
armamentista que se seguiu. No entanto, para alguns, isso pode constituir uma quimérica
alternativa para apresentar a algumas faixas do eleitorado com propensão para o
culto de teses salvíticas.
Os
soberanistas europeus criticam o modo de atuar da oligarquia comunitária, de
facto, autocrática e corrupta, esquecendo que os altos quadros da UE são
emanações das oligarquias nacionais, cuja elevação hierárquica como burocratas
comunitários mais não constitui do que promoção na atividade autocrática e
corrupta que desenvolviam nos seus países, como estagiários de um curso para
oligarcas globais (os casos de Barroso ou de Junkers são bem conhecidos).
Os
soberanistas, justamente, não gostam das autocracias europeias, isentadas de
qualquer simulacro democrático, escolhidas nas altas esferas do PPE/D&S,
não votadas por ninguém; porém, aceitam como democráticas as situações típicas
dos estados-nacionais, onde, em cada um, a população inteira pode votar mas, em
candidatos membros dos partidos, escolhidos pelos seus respetivos chefes.
A
escolha entre defensores do capitalismo globalizado, por regra, neoliberal e os
paladinos das soberanias nacionais, tendencialmente keynesianos
não constitui qualquer alternativa; mas, constitui certamente um elemento de
divisão entre a multidão de trabalhadores, pensionistas, desempregados, jovens,
qualquer que seja a sua origem territorial, étnica ou religiosa.
Por
natureza, não aceitamos oligarquias políticas ou económicas, classes políticas,
cleros ou capitalistas; recusamos qualquer estrutura de exploração ou domínio
de uns por outros. A soberania que interessa considerar é a inerente a cada ser
humano, a possibilidade de decidir sobre a sua vida; e de se articular com os
seus semelhantes, quando essa decisão tem de ser partilhada, num processo
enriquecedor que é a construção comum da satisfação
das necessidades coletivas.
· O que tem um
interesse meramente local é decidido e executado localmente; a soberania é
local;
· O que tem um
alcance municipal exige uma decisão tomada por todos os munícipes; a soberania
é municipal;
·
Se um problema
ou necessidade tem um impacto regional, a solução e a sua configuração só
poderá resultar de uma decisão dos residentes nessa região;
·
E assim
sucessivamente, para várias regiões, países, conjunto de países, no âmbito de
uma União
dos Povos da Europa.
A
haver necessidade de uma representação, compete aos representantes defender a
posição decidida coletivamente na instância devida; em caso de incumprimento do
mandato, a esse representante é-lhe retirada essa função. E as pessoas que
tiverem como função assegurar, do ponto de vista técnico, a satisfação das
necessidades coletivas, terão de prestar contas regularmente e sempre que
necessário, aos membros da comunidade ou aos seus representantes eleitos.
Toda
a soberania que não emane do povo, direta e exclusivamente, dá pelo nome de
usurpação, podendo esta fazer-se acompanhar por nepotismo, autoritarismo,
corrupção; que, como é bem evidente, constitui a imagem de marca das classes
políticas e dos aparelhos de estado.
Procedemos,
de seguida ao relato sucinto de elementos de caráter histórico reveladores da
muito limitada soberania portuguesa nos últimos séculos, à medida que se foi
acentuando o atraso do desenvolvimento capitalista do país e o caráter
antidemocrático e oligárquico do poder, conduzindo à sua crescente irrelevância
no contexto internacional, à sua tendência para uma periferia europeia; e não
só, ibérica.
2
- Traços condutores de uma estratégia defensiva
O
caráter periférico e subalterno de Portugal não nasceu com a recente integração
europeia e não se supera, certamente, com o retorno a um encerramento autárcico copiado de
Salazar, com hinos patrióticos e olhares de desvelo para com a bandeira ou uma moeda
que ninguém quer.
Essa
subalternidade iniciou a sua consolidação a partir da relação que Portugal
estabeleceu com a Inglaterra a partir de meados do século XVII, depois de
extinta a monarquia dual, estabelecida em 1580, ano em que deixou de haver um
herdeiro do trono português. A posição geográfica periférica fez com que a
participação nos conflitos europeus posteriores tenha sido episódica e ligeira,
tendo em consideração três questões essenciais:
·
a defesa contra
as ameaças aos domínios coloniais;
·
a devida atenção para que nada motivasse uma
invasão espanhola;
· que a Inglaterra
se mantivesse empenhada na independência do seu aliado face a Madrid.
A
situação periférica de Portugal foi, curiosamente, uma razão para a sua
existência enquanto estado-nação até hoje, com um território praticamente
estável há nove séculos. Nunca houve uma demarcação fronteiriça, cultural ou
linguística que diferenciasse verdadeiramente Portugal do resto da Península,
nomeadamente face ao espaço galego, castelhano ou andaluz. O mesmo se poderá
dizer quanto a Borgonha, Baviera ou Saxónia, relativamente a espaços seus
vizinhos; e no entanto, essas áreas, situadas no centro da Europa, foram objeto
de turbulência de turbulências religiosas, disputas imperiais que conduziram à
sua integração em estados-nação mais vastos. Passe a especulação histórica, se
Portugal tivesse um enquadramento geográfico equiparado aos casos citados,
existiria ainda hoje como estado-nação?
A
Catalunha, apesar da sua riqueza e desenvolvimento foi absorvida pelo poder de
Madrid e Sabóia incorporou-se numa Itália unificada, porque o seu soberano se
tornou o rei do espaço unificado.
Essa
assumida posição periférica na inserção europeia, temperada pela perenidade da
aliança com a Inglaterra desde a Idade Média, traçou um marcado desfasamento
económico e cultural face à Europa Ocidental, após o descolar do capitalismo;
desfasamento que se veio a traduzir em menosprezo por parte das potências
europeias que consideravam Portugal pouco digno de ser potência colonial. Foram
causas ocasionais, coincidências favoráveis, que permitiram ao colonialismo
português ter sido o último dos colonialismos europeus.
3
- A arguta avaliação de David Ricardo
O
regresso do poder a uma casa real de origem portuguesa, em 1640, beneficiou das
esperanças do povo em se livrar dos pesados tributos impostos por Espanha,
envolvida na Guerra dos Trinta Anos; como da concomitância da revolta catalã a
cuja repressão Madrid deu prioridade; e ainda do apoio dado pela França, pela
Holanda (apesar da sua disputa pelas colónias portuguesas) e, sobretudo pela
Inglaterra.
O
rei inglês, Carlos II, concluiu um pacto com o rei português João IV no âmbito
do qual Carlos casou com uma filha do rei luso. Nesse pacto, os ingleses não
devolveram os territórios coloniais que entretanto haviam tomado aos
portugueses, receberam Bombaim e Tânger, garantias de liberdades comerciais e
religiosas em Portugal, levando ainda a princesa consigo um dote em dinheiro de
£ 300000; em troca, a Inglaterra forneceu ajuda militar contra os espanhóis,
cujo enfraquecimento lhe era francamente favorável, além de que ganhava uma
posição estratégica no sul da Europa. Numa relação entre desiguais não se pode
esperar um negócio equitativo.
Para
além da exploração colonial, já então centrada no Atlântico Sul, no Brasil e no
tráfico de escravos, Portugal, à época, tinha uma agricultura atrasada,
dependia do exterior para o abastecimento de tecidos, cereais e outros bens
alimentares, pagos com o produto do comércio colonial. Na parte final do século
XVII, o conde da Ericeira contratou especialistas ingleses e italianos para a
produção de lanifícios e seda, numa aplicação dos princípios mercantilistas defendidos
por Ribeiro de Macedo; isto é, procurar acumular ouro, a partir de saldos
externos positivos. Ao estabelecer uma indústria têxtil na Serra da Estrela,
por contrato com cristãos-novos, o conde encontrou dificuldades; aqueles eram
mal aceites pelo fanatismo religioso popular e, por outro lado, os artesãos da
região temiam a concorrência da nova tecnologia.
Em
1703 o diplomata inglês Methwen forneceu, sem o saber, os dados para David
Ricardo (de origem portuguesa) exemplificar a teoria das vantagens
comparativas. Methwen conseguiu um acordo segundo o qual a importação de panos
e manufaturas de lã deixaria de ser proibida, permitindo que a produção
inglesa, mais desenvolvida, dominasse o mercado português, provocando a inviabilidade
da indústria portuguesa, então com razoável exportação para Inglaterra; uma
lógica que foi imposta na Índia poucas décadas depois, com consequências
desastrosas para a então colónia inglesa.
Em
contrapartida, a Inglaterra preferiria os vinhos portugueses em detrimento dos
franceses, o que viria a conduzir à especialização portuguesa na agricultura,
mormente dos vinhos, cuja produção e comércio viria a ser dominada por
ingleses; tal como hoje, os principais setores de atividade eram pertença de estrangeiros,
fornecendo os portugueses, trabalho braçal, menos qualificado e pior pago.
Na
sequência do tratado de Methwen e do subdesenvolvimento que selou, a área mais
pujante do mundo de fala portuguesa firmou-se no Brasil enquanto o rei
enterrava dinheiro no imobiliário (Mafra), uma tradição que o actual regime
cleptocrático soube manter, substituindo os brasis por dívida a bancos
estrangeiros; e isso, enquanto o povo de Lisboa tinha de se quotizar para ter
um aqueduto.
A
gula da corte tentou criar mais um eldorado em Angola, através da tentativa do
governador Francisco Sousa Coutinho mas acabou por falhar. Para além do Brasil,
a ocupação portuguesa era superficial, com trocas comerciais com os povos
autóctones, incentivados a guerrearem-se entre si para abastecimento de
escravos aos negreiros. Havia traficantes mas, não capitalistas que explorassem
as riquezas do territórios, para além de metais preciosos ou diamantes se
existissem; apenas numa economia de extração.
Convém
ter em conta que o conceito de estado-nação não existia como hoje e que
Portugal consistia nos domínios da realeza, que tinha entre os seus súbditos,
os nobres, o povo e um numerosíssimo clero que se encarregava de manter, sob a
ameaça da fogueira e da expropriação, as almas nas graças dos senhores do Paço
e do Céu. Por outro lado, o Estado e as finanças hoje designadas como públicas,
mais não eram que a contabilidade da realeza e a exação fiscal que a mantinha.
Com as devidas adaptações nada, em substância, muito diverso do que acontece
hoje nas “democracias representativas”.
Na
lógica mercantilista da época, em termos financeiros, tudo corria bem pois o
ouro do Brasil dava para pagar os deficits externos (em 1730/40 as exportações
para a Inglaterra eram £ 400000 e as importações, de € 1 milhão)[1],
não sendo então, preocupação corrente, a geração de valor acrescentado numa
atividade, as qualificações ou o poder de compra dos assalariados; e ainda se
estava longe da independência das colónias na América do Sul. Uma vez mais
ficava evidente a leviandade governativa perante a pobreza, a subalternidade e o atraso
económico e cultural de Portugal.
Como
se viria a tornar particularmente claro no século XX, nos últimos anos de
Portugal colonial, o atraso económico das colónias revelava que um país
semi-colonial (Portugal) não tinha capacidade para uma verdadeira exploração
colonial, capitalista, como se observava nas colónias inglesas, francesas ou
holandesas; sem que, com isto, se pretenda branquear a barbaridade e as
violências dessa exploração ou anular a dívida histórica que as potências
coloniais têm para com os povos colonizados.
4
- As invasões francesas e a separação do Brasil
No
princípio do século XIX, o periférico Portugal só se viu envolvido nas guerras
napoleónicas quando Napoleão decretou o bloqueio europeu aos navios ingleses,
tendo em vista a ruina do comércio inglês que, inicialmente decaiu 25 a 50%.
Esse bloqueio afetava também outros países, cujos navios a marinha inglesa
confiscaria se desconfiasse viessem a dirigir-se a França ou seus aliados. Ora
Portugal, dependente do comércio com o Brasil e com uma relação predominante
com a Inglaterra teve de a seguir, até porque a Inglaterra dominava os mares. E
assim atraiu a cólera de Napoleão, seguindo-se três ondas de tropa francesa que
roubaram e violaram quanto puderam, apoiados inicialmente por tropas espanholas
que invadiram o norte e o sul de Portugal.
Em
1807, pouco antes de Junot entrar em Lisboa, a rainha e as outras pérolas da
corte embarcavam para o Brasil, protegidos por uma esquadra inglesa, sem
cometerem o imperdoável esquecimento de levar na viagem os belos móveis do
palácio de Mafra. Como finos comerciantes, os ingleses aplicavam a regra de que
não há almoços grátis e, em contrapartida da proteção da corte, exigiram que os
portos brasileiros se abrissem ao comércio com os navios ingleses, deixando
pois, de ser coutada lusa, em exclusivo. Assim, o Brasil que já era a principal
área em termos culturais e económicos, ao acolher a Coroa, passou a ser a
cabeça do império dos Braganças.
Mesmo
sem a presença do poder real, tal como acontecia em Espanha, há uma diferença
bem clara na reação aos invasores; em Portugal houve inicialmente parca
resistência, como aliás decretado pelo futuro João VI antes de embarcar para o
Brasil, na esperança tonta (já naquela época) de que a submissão evitaria danos
e humilhações. Esta real postura é sem dúvida interessante vinda de quem, para
não sofrer amargos, se acolheu ao sol de Copacabana; e ofereceu mais uma prova
da pequenez dos monarcas da dinastia dos Braganças.
Tendo
em conta a fome derivada da destruição provocada pela passagem de exércitos e
pela guerra, houve alguma resistência, essencialmente no norte do País, por
onde entram as tropas britânicas em junho de 1808, seis meses após a chegada de
Junot, no contexto de uma guerra peninsular,
uma vez que, entretanto, os espanhóis deixam de ser aliados da França.
A
resistência organiza-se então, com a criação de um novo exército português,
dirigida por Beresford, enquadrado por oficiais ingleses[2]
que, pela falta de militares portugueses experimentados, decidiu enquadrar,
como auxiliares e vigias, grupos locais de resistência. Os regimentos
portugueses vieram, depois de adestrados na guerra moderna pelos ingleses a
ficar, em 1809, sob o comando do então Wellesley, mais tarde duque de
Wellington; este, como que num estágio para Waterloo, poucos anos depois. Esta
realidade coincide com a opinião de Napoleão que, desde 1801, tomava Portugal como uma
província britânica.
Em
Espanha, onde o poder central estava ocupado por José Bonaparte e o território
tinha uma dimensão muito superior ao português, com muitas cidades importantes
e um terreno montanhoso favorável, são os grupos de guerrilha ancorados em
líderes locais, mormente contrabandistas e vulgares bandidos que organizam a
resistência, agindo com total autonomia, atacando toda a logística militar dos franceses.
A multiplicação desses grupos autónomos do poder institucional, móveis, com
grande capacidade tática e apoio popular terá dado origem à designação de
guerrilha.
Em
Portugal não existiu, contudo, uma resistência equiparada; nada como o que deu
origem aos fusilamentos em Madrid, de 3 de maio de 1808, executados pelos
franceses e, magistralmente pintados por Goya. E se tivessem havido, não teriam
um Goya que os pudesse pintar.
Francisco Goya - Fusilamentos
de 3 de maio de 1808
Depois
do final da guerra o inglês Beresford, tornou-se o comandante do exército
português, passando a marechal por ordem do regente, depois de se ter deslocado
ao Rio de Janeiro em 1815 e de onde voltou com amplos poderes de administação
do estado. Esses poderes foram reforçados em nova viagem ao Brasil, em 1820
mas, na sua ausência, tinha acontecido a revolução liberal do Porto que havia
dispensado os serviços dos oficiais ingleses no exército; e, no regresso, a
Beresford nem sequer foi dada autorização de desembarcar.
Em
1821, João VI voltou a Portugal dadas as alterações políticas no ano anterior,
inspiradas nas Juntas espanholas durante a resistência aos invasores franceses
e nos princípios da constituição liberal de Cádis de 1812, a segunda a ser
redigida na Europa depois da corsa, em 1755. O Brasil, com a saída da corte e
na sequência da independência das colónias espanholas das Américas demonstrou,
pela boca do principe Pedro, herdeiro da coroa portuguesa que, de facto, o
Brasil não necessitava de Portugal para nada. E afirmou que são “estados
independentes” “os que nada carecem, como o Brasil” e que “Portugal é hoje em
dia um estado de quarta ordem e necessitado, por consequência, dependente”[3].
E Pedro tornou-se imperador do Brasil. Nesse contexto, poderá dizer-se que o Brasil
dera a independência a Portugal, ao contrário da narrativa histórica
nacionalista portuguesa.
E
assim, nas Cortes de 1821/22 onde se elaborou a constituição de 1822, os
representantes presentes “o escol da nação, os principais
negociantes, os juízes mais cultos, os burocratas mais instruídos, os oficiais
do exército que sabiam matemática”[4] (muito
longe do que acontece com a classe política de hoje) perguntavam ao governo
quais eram afinal as colónias portuguesas. Podem apontar-se várias razões para a
pergunta;
- Primeiro, porque até ali o Brasil era o que verdadeiramente contava, surgindo por consequência a necessidade de inventariar o que restava para explorar.
- Depois, porque sendo as colónias pertença dos Braganças e Pedro, imperador do Brasil enquanto seu pai João VI ficara como rei de Portugal e dos Algarves, fazia algum sentido definir as colónias que ficariam como dependências da família instalada em Portugal ou adstritas ao ramo instalado como casa reinante, no Brasil.
- Por outro lado, a tradição comercial e o
típico intermediarismo eram tão fortes que ninguém considerava em Portugal
uma atividade económica própria, para comercializar com o exterior, como
acontecia com as principais potências europeias que vinham explorando as
capacidades das novas tecnologias, do modelo capitalista, da afirmação
de uma burguesia que captasse no campo mão-de-obra para o trabalho
fabril e se dedicasse à criação de uma consciência que configurasse um
estado-nação viável. Por exemplo, em Portugal, o traçado da linha férrea
iniciada em 1856, com estações em pleno mundo rural, é revelador, não só
da inexistência então, de uma rede viária, como da ausência de verdadeiras
cidades, populosas e com atividade industrial; daí que seja hoje parca a
sua utilização.
Esse subdesenvolvimento contribuía para a persistente periferização no
contexto europeu de então e tinha correspondência com o atraso educacional do
povo, em grande maioria analfabeto.
No ensino superior a situação só corroborava o atraso geral. Em 1746, o
reitor do Colégio das Artes de Coimbra proibia por decreto "quaisquer
conclusões opostas ao sistema de Aristóteles" e "opiniões novas,
pouco recebidas e inúteis para o estudo das Ciências Maiores, como são as de
Renato Descartes, Gassendi, Newton e outros”[5]. Todos estes
vultos da civilização tinham falecido há um século e a sua obra estava pois
consolidada na ciência e no pensamento europeu; mas… nem tanto em Coimbra!
5 - Monarquia liberal, ma non
tropo e tutelada
Em meados dos anos 40 do século XIX havia uma disputa acerada entre
cartistas e setembristas, todos defensores do modelo político liberal; os
segundos, embora mais radicais, vieram a ser apoiados durante a contenda, pelos
miguelistas, defensores do absolutismo real. Perante as manobras dos cartistas,
para conservar o poder, com o apoio da rainha Maria II, a contestação
constitui-se no Porto sob a forma de uma Junta Governativa, que teve o apoio de
militares e populares, pouco antes envolvidos nas revoltas populares conhecidas
por Maria da Fonte.
Desencadeou-se então uma guerra civil - a Patuleia – cuja designação
pejorativa era dada aos setembristas e ao povo que os apoiava contra a rainha.
Maria II recorre ao apoio da Quádrupla Aliança, celebrada em 1834 tendo como
parceiros, França, Inglaterra e os países ibéricos e a Espanha coloca tropas na
fronteira enquanto os ingleses esperam para ver, sem que isso impeça a
constituição de mais Juntas governativas contra o poder de Lisboa.
Em março de 1847, quando Lisboa se achava ameaçada e com a revolta já
instalada nas suas ruas, a rainha renova o apelo ao auxílio dos seus aliados,
os quais, obtido o acordo da Inglaterra, fazem entrar tropa espanhola pela
fronteira de Trás-os-Montes na direção do Porto, enquanto uma armada inglesa
bloqueia a entrada no Douro.
Em junho é assinada a convenção de Gramido entre os revoltosos e os
generais estrangeiros “para dar pacífico cumprimento às resoluções das
Potências Aliadas” com a aceitação da obediência à rainha. Nessa convenção, a
região do Porto é ocupada por tropas espanholas apoiadas no Douro por barcos
aliados (artº 2º) que decidirão o momento da retirada (artº 3º). Apesar das
disposições conciliatórias e honrosas para com os vencidos, a rainha validou
perseguições dos seus adversários.
6 - Um século de corrida às colónias
A partir de 1850 o governo português continuava apenas interessado nas
áreas costeiras das colónias, mormente Angola e Moçambique, pela sua dimensão.
O comerciante Silva Porto tinha, entretanto, efetuado expedições para o
interior e o seu pedido ao governo para enviar um destacamento militar e ocupar
o terreno, não foi atendido. As mediáticas viagens de Livingstone e Stanley
aguçaram o interesse das grandes potências que se viriam a concertar na
Conferência de Berlim em 1884/85 para a partilha da África, exigindo a efetiva
ocupação do terreno; as viagens de Capelo e Ivens efetuaram-se em cima do
acontecimento, para cumprir aquela exigência. A tese da ocupação efetiva
defendida pelas potências dominantes representava a lógica capitalista da
exploração dos recursos dos territórios. Inversamente, a defesa dos direitos
históricos por parte de Portugal revelava uma perspetiva de senhorio, uma
assunção de incapacidade por parte do incipiente capitalismo luso, com reflexos
nas esferas do poder político. Assim sendo, Portugal reivindicava toda a área
que ligava Angola a Moçambique, pintada a cor-de-rosa no célebre mapa que
demarcava a partilha e que incluía os atuais Zimbabwe, Zâmbia e Malawi.
Nessa partilha de África mostrava-se a hierarquia entre os países e daí
que a megalomania de Cecil Rhodes - construir um caminho-de-ferro do Cabo ao
Cairo - exprimisse os apetites da potência dominante, a Inglaterra. Perante o
desinteresse da França e da Alemanha por aqueles territórios, a Inglaterra só
tinha a opor-se-lhe a sua semicolónia portuguesa que naturalmente, teria todos
os motivos de ordem prática para se vergar. O Ultimato de 1890, foi
interpretado em Portugal como símbolo da decrepitude da monarquia, como uma
questão de regime político, o que ocultava o verdadeiro problema, o caráter
subalterno de Portugal no concerto dos estados europeus, em época de partilha
colonial. Por essa ocasião, Eça de Queiroz, diplomata em Inglaterra e França,
dizia que Portugal era “um sítio”, ligeiramente diferente da Lapónia que
nem sítio era.
A humilhação, para mais proveniente do mais velho aliado, revelava o
caráter utilitário dessa aliança para a Inglaterra, como é normal nas relações
internacionais entre países de diferente gabarito. A reação nacionalista que se
seguiu reforçou a contestação republicana e exacerbou, na consciência dos
portugueses, a importância do império colonial, durante décadas. Na I República
e no regime de Salazar, as colónias foram algo de sagrado, embora Portugal
nunca tivesse condições para explorar os seus recursos[6] nem para
gerar desenvolvimento nas mesmas; a não ser, na fase final da colonização, com
a presença de milhares de militares. Veio a afirmar-se o caráter insólito de
uma potência colonial que, por seu turno, era um país atrasado e dependente.
Na história do colonialismo português é particularmente válida a
caraterização do domínio dos “3 M” de René Dumont – le militaire, le marchand, le missionaire.
Ainda
em 1898, Lord Salisbury, primeiro ministro inglês, definia Portugal no seio das
“nações moribundas” ao nível dos impérios otomano e chinês. Pouco mais de cem
anos depois, não é difícil perceber que Portugal – já sem adereços coloniais e não
tendo gerado um verdadeiro capitalismo capaz de densificar a matriz das
relações inter-sectoriais - seja apenas um corredor onde se cruzam as redes das
multinacionais. As burlas na banca – até ver impunes - acabaram com um setor
financeiro já pouco estruturante, vêm cavando fundo nos bolsos da plebe e
criaram uma
das maiores dívidas mundiais, por encomenda de Frankfurt.
Nessa
época (1898), em contrapartida de um vultuoso empréstimo, a Inglaterra
pretendia ficar com as receitas das alfândegas coloniais, num óbvio passo para
se apossar do controlo das colónias portuguesas. Como a Alemanha protestou por
ficar de fora, ingleses e alemães decidiram partilhar as alfândegas do norte de
Angola e do sul de Moçambique (Inglaterra) e sul de Angola, norte de Moçambique
e ainda Timor (Alemanha). A hostilidade da França ao reforço dos seus rivais e
a proximidade da guerra anglo-boer, frustrou esse plano, revelador do que valia
a soberania de um estado dependente e frágil em pleno período de fortes
rivalidades inter-imperialistas. Para ter facilidades portuguesas em Moçambique
contra os boers, a Inglaterra renovou a sua fidelidade ao tratado de Windsor,
de 1661, no qual se obrigava a defender as colónias portuguesas contra todos,
no (então) presente e no futuro.[7]
Após
o estabelecimento da República em 1910 não se reduziram as pretensões das
grandes potências sobre as colónias portuguesas, beneficiando Portugal das
rivalidades entre aquelas. Por outro lado, as divisões entre os republicanos
geravam uma instabilidade política que promoveu diligências espanholas junto da
França e da Inglaterra para aceitarem uma sua intervenção militar em Portugal,
para debelar a “anarquia” e, claramente, a Inglaterra não se iria indispor com
Espanha com quem tinha uma amizade mais valiosa do que a portuguesa[8].
Em
Inglaterra surgiram críticas à colonização portuguesa, ao trabalho forçado, ao
negócio de fornecimento de moçambicanos para as minas na África do Sul, à
escravatura nas roças de cacau em S. Tomé; tudo isso para demonstrar a
incapacidade portuguesa, ao mesmo tempo que passava desapercebido, sem
críticas, o massacre dos hereros e dos namas (reconhecido recentemente pela
Alemanha) ou a bestialidade dos belgas no Congo. Os fins justificam os meios…
Em
consonância com essa campanha, a Inglaterra e a Alemanha decidiram a partilha
de Angola e Moçambique. Se a segunda estava sequiosa de colónias, uma vez que chegara
tarde à colonização, a primeira achava que alargar a presença alemã em África
seria uma forma de estabilizar as rivalidades na Europa; mais concretamente,
conter o crescimento do poder naval alemão teria como custo a partilha das
colónias portuguesas. Assim, a missão que teve a designação de código Hadane terminou com a rubrica por ambos
os países, a 13 de agosto de 1913, da partilha da Angola e Moçambique, com a
entrega de S. Tomé aos alemães e ficando Timor fora do acordo, provavelmente,
porque… ainda se não havia descoberto que havia petróleo nas suas águas
territoriais.
A
França, colocada, de novo, fora dessa partilha, protesta com a aproximação da
Inglaterra com a Alemanha, contrária à Entente Cordiale subscrita em 1904 entre
os dois vizinhos do mar da Mancha. E as suas pressões, aliadas à diplomacia
portuguesa arrastam a concretização do acordo, que acaba por não acontecer, uma
vez que em julho de 1914 começa a I Guerra. A experiente diplomacia britânica
tinha falhado no aplacar das ambições alemãs como em 1938, falharia com a
entrega da Checoslováquia a Hitler, para evitar uma nova guerra.
(CONTINUA)
Este e outros textos em:
[1] Jaime Cortesão, Alexandre de Gusmão
e o Tratado de Madrid
[2] Na batalha de Vimeiro o exército
anglo-português é composto por 14000 ingleses e 6000 portugueses
[3]
em “Portugal não existe” de João Bernardo
[4]
Em “Portugal não existe” de João Bernardo
[5]
https://www.uc.pt/org/historia_ciencia_na_uc/Textos/cienciasexactas/osjesuitas
.” In “Os Jesuítas e os Oratorianos
http://www.contraditorio.pt/debate-fechado.php?id=3258 ,.
(citação Palmira Silva
[6] Na Diamang, predominavam capitais belgas e
sul-africanos; a exploração de petróleo em Cabinda cabia aos norte-americanos e
o minério de ferro de Cassinga era explorado pela Krupp e uma empresa
dinamarquesa, destinando-se ao Japão. Em Moçambique, o território foi entregue
a enormes domínios que funcionavam como estados
delegados pela entidade colonial.
[7] Conf. “A Guerra que Portugal Quis Esquecer”
de Manuel Carvalho
[8] Conf. “A Guerra que Portugal Quis Esquecer”
de Manuel Carvalho
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