O esmagamento pelo trabalho e as
formas de preenchimento do restante tempo de vida geram o stress e conduzem à superficialidade e ao culto do espetáculo como
elementos essenciais para o controlo biopolítico da multidão.
1
- Uma invenção recente – a falta de tempo
2 – Capitalismo e controlo biopolítico
3 – Informação e formatação
4 - A leitura em diagonal
1 - Uma invenção recente – a falta de tempo
Apesar das tecnologias de informação, de estradas e
autoestradas, de veículos disponíveis para deslocações, ninguém tem tempo. Como
se o tempo pudesse acabar, como referido por um sábio polinésio ao observar,
espantado, a correria constante do Papalagui[1]
(o homem branco) numa metrópole europeia, cerca de cem anos atrás. Ele preferia
o afago das suas mulheres, sentar-se ao entardecer e contemplar o mar. Um sábio
é quem sabe usufruir a sua passagem pela vida, sem atropelos nem ansiedades.
O frenesi daquela época não se pode comparar com o de
hoje naquelas metrópoles, aumentadas e densificadas e o fenómeno estendeu-se a
cidades e aldeias, pequenas e médias; Pouco depois da visita do polinésio à Europa
e a partir de 1930, o stress foi
apontado como factor disruptivo para os humanos, que pode degenerar em
encefalomielitis miálgica, síndroma de fadiga crónica, mais economicamente, a surmenage, o termo francês que cedeu,
entretanto, perante a maior popularidade do inglês, para designar a maleita.
A ânsia de prosseguir uma tarefa com a constante sensação
de atraso na sua realização – efetivo ou eminente – é doentia, mesmo que nada
haja de relevante ou obrigatório para fazer de seguida. O stress preenche a vida de todos os dias, numa sucessão de tarefas
tomadas ou sentidas como inadiáveis, urgentes e que parecem fugir à nossa
frente; seja no trabalho, nos percursos entre a casa e outro local (mesmo que
seja a praia), na realização dos actos domésticos quotidianos e rotineiros, nas
relações com os outros, tudo isso é marcado pelo andamento do relógio, sobreposto
pelo toque do telemóvel, pela preocupação de conseguir amanhã o rendimento para
pagar o consumo de ontem, para comprar hoje o que amanhã já não estará em saldo
ou na moda, mesmo que objetivamente, não faça falta alguma.
Esta ânsia insatisfeita, de corrida contra o tempo faz
lembrar Tântalo que via a água fugir-lhe à frente da boca sempre que a queria
sorver. Tântalo estava a isso condenado para todo o sempre, de acordo com a
narrativa grega, a tentar algo que nunca iria realizar. Na vida “civilizada” de
hoje, o tempo parece fugir à nossa frente porque a nossa existência é atulhada
de obrigações e escolhas de premência sentida e incorporada na nossa objetiva
vontade. É o tempo que se encurta à nossa passagem ou é a carga de tarefas que
assumimos exagerada quando a repartimos por unidade de tempo?
É evidente que o stress
constante e massificado como o conhecemos não é uma inerência à espécie humana[2]
e menos ainda quando o grau de satisfação das múltiplas necessidades se acha
muito mais facilitado do que em épocas passadas. Ele é induzido da organização
social, do modo de produção capitalista[3]
cujo objetivo é a acumulação de capital e para o qual os humanos são mercadoria
a incorporar com outras mercadorias – naturais, manufaturadas, ambientais ou
imateriais – no âmbito de um processo
produtivo global, bem definido.
A vida de outrora, no campo, tinha um horário bem
determinado pelas estações e pelo ciclo diário do sol; os ritmos da natureza e
a falta de luz solar limitavam a ocupação produtiva no campo mas, deixava tempo
para a confeção da roupa, para zelar pelos animais e orientava também a vida de
ferreiros, correeiros, tanoeiros e outros artesãos. A inquietação acontecia
perante uma tempestade fora da época, uma seca prolongada, a destruição de uma
guerra ou as descuidadas caçadas dos senhores; melhor seria chamar a essa
angústia medo, pois desses eventos poderia decorrer fome, doença, morte.
O conhecimento científico e as tecnologias, daquele
provenientes, trouxeram muitas vantagens à vida dos humanos, aumentando a
longevidade e reduzindo a dependência de ciclos e caprichos da natureza,
gerando, em contrapartida, um potencial muito mais alargado de tempo para
repartir entre o ócio e os afazeres necessários. A mecanização, a robotização e
o circuito integrado retiraram das nossas vistas os grandes grupos de gente
vergada a trabalhar no campo ou a entrar em magotes para as grandes fábricas,
típicas do fordismo.
Na realidade, tendo em conta o caráter limitado das
necessidades de cada pessoa e o muito maior número de gente susceptível de
exercer uma atividade produtiva, tudo indicaria que o tempo dedicado ao esforço
laboral de cada um se reduzisse, em benefício de maior disponibilidade para a
sua utilização em atividades culturais, de lazer ou na gestão de afetos. Pelo
contrário, há uma corrida com a meta sempre por alcançar, resultante duma
produtividade que se pretende infinitamente crescente por unidade de tempo ou,
se se preferir, a prossecução de uma produtividade de tal modo elevada que o
tempo unitário de produção de qualquer bem ou serviço possa tender para zero.
Se isso acontece no plano da produção o mesmo se verifica no contexto da venda,
sendo necessário ser competitivo para escoar os bens ou serviços produzidos,
numa lógica de incessante procura de conquista de mercado, de aumento das
vendas, através da utilização de agressivas técnicas de marketing, de redução
de custos laborais, de envolvimento do Estado na elaboração de regulamentos, da
dotação de financiamentos e da instituição de uma benévola fiscalidade sobre as
empresas.
Os ganhos de produtividade não se refletem sensivelmente
no tempo de trabalho de quem exerce funções laborais. Em Portugal as oito horas
de trabalho foram estabelecidas para o comércio e indústria em 1919 (na
agricultura em 1962) e, passado um século, a sua redução é pouco significativa,
em nada se comparando com a evolução da produtividade. A comparação é ainda
menos gloriosa se se considerar o tempo dos percursos pendulares casa-emprego
hoje, muito superiores aos de há um século, quando a habitação não distava
muito do local de trabalho; e ainda, porque a redução da dimensão das famílias,
obriga ao depósito das crianças de manhã (e a sua recolha ao final da tarde) em
escolas, creches ou casas de familiares, com os desvios e encargos necessários
dos progenitores, uma situação que há um século era mitigada pela proximidade
dos núcleos familiares ou pela coexistência de várias gerações numa mesma casa.
Por outro lado, a não redução do tempo de trabalho da
população ativa num dado momento, afasta da atividade laboral uma fatia
crescente da população e torna esta força potencial de trabalho numa
“mercadoria” superabundante que, como tal, tenderá a ser objeto de um baixo
preço relativo e condições de exercício mais penosas e precárias. Assim, uns,
os mais jovens, verão retardado o seu início no trabalho, do acesso a um
rendimento, à construção de um futuro; outros, os de escalões etários
intermédios arrastar-se-ão pelo desemprego ou serão objeto de aposentações
antecipadas, penalizadoras, depois de um negócio sórdido para evitar o mal pior
do desemprego. Para todos estes o stress não
será problema gerado pelo trabalho mas, precisamente, o resultante da sua
falta, pela vida que passa sem um rendimento susceptível de uma vida digna, sem
uma ocupação que a sociedade, na sua cruel avaliação, considere digna e, para
mais, com uma compensação – subsídio[4]
– precária e apontada com caráter esmoler, parca para eventuais
responsabilidades familiares e outras para cumprir.
A falta de tempo, embora sentida individualmente não é
materialmente verdadeira, é uma criação capitalista, pela sua generalização,
pela sua omnipresença, pela forma como é introduzida na cultura da multidão,
como algo natural, dependendo apenas da gestão que cada um faz da sua vida;
como se o problema do stress fosse de
responsabilidade individual e não caraterística sistémica. O mesmo sucede com a
dívida que deve ser assumida como culpa ou pecado a expiar com sacrifícios,
como resultante de um despesismo estouvado de que o devedor é um único
responsável; e no caso da dívida pública como produto de uma cultura coletiva
de leviandade e de imprevisão, a repartir por todos. O capitalismo é
particularmente ágil em se isentar, enquanto sistema, dos males que provoca,
encontrando sempre agentes específicos para cada desastre, ameaça ou problema,
isolando-os, recusando proceder à análise das interações.
Essa pretensa falta de tempo desvaloriza o tempo presente
através da pulsão para a chegada do momento seguinte, ocasião para qualquer
concretização de tarefa, funcionando um desnecessário acto de consumo como
lenitivo para o stress; e chegado o
momento seguinte a preencher com outra tarefa, logo esta é desvalorizada,
porque outra já se encontra na fila.
2 – Capitalismo e controlo biopolítico
As necessidades do capital, da produção, do crescimento,
da competitividade, do investimento para gerar emprego[5],
são apresentadas como necessidades coletivas, que se sobrepõem às individuais,
de todos, embora na realidade sejam essencialmente as necessidades de
acumulação de capital, de alguns.
Se o sistema político e económico preenche de tarefas e
responsabilidades de cada pessoa, o tempo sobrante tende, por um lado, a ser
escasso e objeto de pressões exteriores ao indivíduo ou endogeneizadas por ele,
inconscientemente. Por outro lado, o capitalismo, na passagem do controlo
disciplinar para o controlo biopolítico trata de produzir aplicações desse tempo
sobrante que sejam convenientes para a reprodução do sistema. O controlo
biopolítico corresponde ao caráter invasivo do capitalismo de hoje, no contexto
da incorporação e controlo dos desejos, para que estes não se transformem em
subversão da (des)ordem existente; sobretudo se incorporado por grupos e
segmentos alargados da população.
A questão do controlo biopolítico remete para outro tipo
de análise, subsequente, muito interessante nos tempos que correm. As religiões
do Livro concebem o Homem como produto de Deus, algo que lhe é exterior, que o
transcende e condiciona e, é nessa mesma senda que laboram os teóricos do
capitalismo, pretendendo considerar este como definitivo, a-histórico,
emanente. Spinoza, na senda de Giordano Bruno e dos estóicos antigos negou a
transcendência no século XVIII e considerou que o Homem se determina a si
próprio, é portador de uma potência que constrói a sua própria existência.
Essa autodeterminação imanente do Homem para a sua realização
em termos materiais e dos afetos sempre foi combatida pelos poderes, mesmo
depois de, a partir de Spinoza, as ideias de transcendência terem perdido
credibilidade e remetidas para o âmbito da fé. Os poderes políticos não podem
controlar o desejo de vida que há em cada pessoa mas podem - e fazem tudo por
isso – controlar a expressão prática e sobretudo coletiva dos desejos;
nomeadamente dos que possam colocar em causa o Estado, as minorias dominantes
ou a ordem social estabelecida pelo capital.
Assim sendo, um sistema político como o capitalismo, apesar
de uma existência historicamente recente, tem mostrado grandes mutações através
do tempo e de acordo com o espaço e está longe de se poder apresentar como uma abstração
acabada, mesmo quando usa a típica e
lapidar afirmação do TINA, “there is no
alternative”. Mas, faz o que pode para incutir na multidão essa inevitabilidade,
contando com o empenhado interesse das classes políticas e das estruturas
marcadamente biopolíticas, nacionais e transnacionais; mormente dos media e da universidade.
Neste contexto, os defensores do capitalismo inventaram a
ideia de que o esforço laboral eleva o prestígio social de cada um, que
contribui para o bem-estar da nação; de que se trata de um esforço vivificante
a maximizar, como no mito em torno de Stakhanov[6].
Tendo em conta as capacidades técnicas de produção de bens e serviços e as
limitações ambientais existentes, não é possível a continuidade do esforço
produtivista de crescimento infinito defendido pelos arautos do capitalismo -
neoliberais e keynesianos – sendo um acto da mais elementar inteligência
destruir o capitalismo antes que ele destrua a humanidade e o planeta.
A pressão do capitalismo exerce-se pois, muito para além
do tempo de exercício das funções laborais ou produtivas. Nestas, pretende-se
um empenhamento físico, anímico e afetivo, uma entrega total em que “é a alma
do operário que deve descer na oficina” como dizem Negri e Lazzarato. Porém, o
capitalismo atual pretende também controlar e condicionar não só a dimensão do
tempo sobrante, mas preenche-lo com uma grande variedade de ocupações insertas
na lógica do capital, nomeadamente no encaminhamento das pulsões de vida para o
espetáculo desportivo, para os wrestlings verbais dos debates televisivos, para
a vacuidade ou a superficialidade dos conteúdos mediáticos, para a apresentação
da política como espetáculo, com atores profissionais (a classe política).
A necessidade ou a pressão para o encaixe de várias
atividades, necessárias ou desejadas, genuínas ou induzidas pelo controlo
biopolítico, nesse escasso tempo disponível é fonte de stress; e o stress
acentua a necessidade da formação de hierarquias naquelas atividades, incute o
desejo de alijar o que possa ser considerado secundário ou estranho, tomado
como elemento de acentuação do stress.
O controlo biopolítico que seca as energias no âmbito do trabalho, prolonga-se
fora dessa esfera e gera uma vida onde o stress
penetra, desconstrói e destrói, mostrando, finalmente uma grande eficácia no
controlo da expressão do desejo, por parte da multidão, da sua canalização para
o que se enquadre na ordem social, atalhando para que se coloque fora de
caminhos politicamente “desviantes”.
O capitalismo existe, envolve e condiciona a nossa vida,
as nossas relações, os nossos passos, os nossos hábitos e necessidades e o
nosso futuro. O capitalismo, dominado pela articulação do sistema financeiro,
com as multinacionais e o capital do crime, capturou as classes políticas
colocando, na sequência, os aparelhos de estado, no essencial, ao seu serviço;
arquiteta o conteúdo e as funções da escola e do sistema de saúde, regulamenta
o acesso à habitação e a circulação de pessoas e bens, procede à produção
legislativa, enforma o funcionamento dos tribunais, das forças armadas e policiais,
bem como a organização política e o modelo de representação, de modo a permitir
a manipulação da multidão e a perpetuação da sua submissão, construindo um
placebo de democracia. No âmbito de leis e regulamentos inscritos numa
burocracia inextricável e de conteúdo pastoso, o capital dominante, acima
referido, utiliza o Estado na estratificação das várias camadas de empresas e
determina, no essencial, a vida de novos e velhos, de trabalhadores no ativo,
no desemprego ou na reforma, de homens e mulheres, de adultos e crianças,
independentemente de culturas e latitudes de proveniência; e ainda de quem deve
viver mais ou menos, tornando a longevidade uma variável económica e quem pode
morrer na miséria, na guerra, na doença, na inanição, em campos de refugiados.
Em suma, não há capitalismo sem Estado, nem (hoje) Estado
sem capitalismo mas a integração de ambos num mesmo objetivo – a acumulação
permanente e crescente de capital, por qualquer meio. Imaginar uma retomada dos
palácios de inverno com um Estado a favor da multidão é a repetição de uma
história que correu mal, é uma visão naif
ou mistificadora, corrente na chamada esquerda com acesso aos media, através de universitários que
terão lido muito, estudado bastante mas, aprendido pouco; apenas evidenciam o
realismo suficiente para serem cortejados para cargos governamentais, num
governo PS.
No momento em que vivemos, o capitalismo é omnipresente
como a morte; e, como a morte, o capitalismo constitui a face oposta da vida
que gostaríamos de viver.
3 – Informação e formatação
O controlo biopolítico exige a definição do que é
fornecido como informação, embora esse controlo se distinga das fórmulas
proibicionistas e persecutórias próprias das sociedades disciplinares. Os media pertencem a grupos editoriais ou
mais vastos e condicionam os conteúdos convenientes para os interesses do
capital em geral, para os desses grupos em particular, relegando – na melhor
das hipóteses - para publicações ou canais com pouca audiência o que possa
transgredir minimamente o controlo dos desejos. O controlo dos conteúdos é
feito no seio de uma hierarquia que vai da administração ao estagiário na
redação, cuja precariedade é apenas mais um elemento para a sua total submissão
aos interesses do sistema, transformando-se o jornalismo na promoção de
espetáculo, fait-divers, ou promotor de instâncias do poder; o jornalismo de
hoje é a atualização do papel dos escribas antigos, funcionários dos faraós.
A condensação da informação encontra uma convergência
entre o interesse do seu destinatário e o do seu emissor, este último, enquanto
agente do poder. O primeiro, porque afogado em tarefas e no stress inerente à sua (não) realização,
no trabalho ou fora dele, deseja a maximização daquela condensação por unidade
de tempo ou a ligeireza que lhe permita aliviar o stress, distraindo-o, sublimando qualquer desejo de mudança. O
poder, por seu turno, exige o torpor do relaxamento que tudo aceita, acrítico e
uma focagem que absorve, que seca e não admite pausas, reflexões, recapitulações.
O fluir do objeto atrai, domina o sujeito, retira-lhe autonomia, manipula-o,
apossa-se dele; é esse o objetivo do controlo biopolítico.
Nas várias formas de trocas ou recolhas de informação só
a oralidade exige a presença ou a interação com o outro. Na oralidade
(excluindo o teatro ou as orações de sapiência dos ungidos[7],
onde normalmente há uma relação unívoca, de cima para baixo) são os
intervenientes que marcam o assunto, o ritmo, a duração, podendo os desejos e
as ideias de cada um expressar-se livremente, possivelmente sem o controlo do
poder; o stress. a existir será
proveniente de causas externas ou de dificuldades de expressão. Na leitura
individual[8],
desde que não compulsiva e com prazo de realização, o ritmo também é decidido
pelo leitor que pode voltar atrás, parar, refletir, divagar, sublinhar,
escrever e intercalar essa leitura com outras, relacionadas ou não, com aquela,
como ainda dialogar com outrem a propósito do tema; tudo é decidido pelo
leitor, mesmo os comentários com outras pessoas. Ler, neste sentido é esforço
que dá prazer, tal como amar[9].
A imagem simples ou uma sequência de imagens cujo ritmo é
definido pelo observador ocasiona situações semelhantes à da leitura:
contemplação, divagação, reflexão, pausas, apreensão de conhecimento, tendo em
conta que numa imagem o detalhe e a informação contida pode ter elevada
densidade, a exigir uma dedicação mais demorada da sua observação e leitura.
A televisão, forma massificada e invasiva de colocar sons
e imagens em conjunto, em sequência, colocam a questão da apreensão num outro
patamar, aquele em que o observador não consegue absorver todo o conjunto que
lhe é apresentado. Primeiro, porque há uma preponderância da imagem, de
captação mais imediata, uma vez que a sua descodificação é mais intuitiva, não
se expressa através dos símbolos que estão presentes na linguagem falada ou
escrita; depois, porque essa preponderância subalterniza o som, as vozes e mais
ainda eventuais legendas; e em terceiro lugar, porque a televisão insinuando-se
em todos os espaços domésticos e públicos é um veículo permanente da ideologia
do poder, de formatação dos desejos no sentido da conformação, do
conservadorismo. como ainda de indução do desenvolvimento do mercado, através
de um consumo tendencialmente orgiástico. O meio torna-se a mensagem e o
televisor a caixa que mudou o mundo, como diria McLuhan.
Para além de monopolizador do olhar, da audição e das
capacidades cognitivas, a marcha ininterrupta da emissão (com ou sem zapping) vai muito para além das
capacidades de apreensão do observador. E este, ao chegar defronte do chamado
pequeno écran (hoje, não tão pequeno
como anos atrás), depois de passar pelo stress
imposto pela sua vida profissional e suas inerentes sequelas, ao prostrar-se
diante do televisor irá protagonizar uma visão superficial, renunciando ao
detalhe[10], à
contemplação. Esse contexto, captura; “o televisor entra, por assim dizer,
dentro do espectador, molda-o”[11].
Essa captura não se reduz quando o observador fica absorto nos seus pensamentos,
distraído dos conteúdos emitidos, funcionando estes como pano de fundo, como
hábito de ruido e imagem avulsa que preenche o espaço, um analgésico.
4 - A leitura em diagonal
Os espíritos cordatos e conciliadores ao assumiram não
terem lido um texto que lhes foi remetido ou aconselhado não se atrevem a
dizê-lo, procurando amaciar o facto com um “li na diagonal”; não se sabendo se
com isso folhearam, viram o índice, simplesmente o título ou mesmo nada. Em
contrapartida, sabe-se que o recém-eleito presidente da República lia, pelo
menos, as contracapas dos livros que receitava aos basbaques. Marcelo tem sido
um grande promotor da diagonalidade, do
verbo fácil e redondo, sem ponta por onde se possa pegar. E por isso, com todo
o mérito, os basbaques colocaram-no no pedestal de Belém, com alta
probabilidade de, um dia mais tarde, se trasladar para o Panteão, na boa
tradição portuguesa de inventar figuras públicas que permitam adoçar a autoestima
de um pequeno povo com uma passagem episódica com relevância na História da
Humanidade.
Como toda a gente tem falta de tempo e anda tomada pelo stress, prefere-se outras formas de
comunicação, menos exigentes que a leitura. Convém também exacerbar a ocupação
profissional como forma de apresentar a relevância no quadro laboral… pelo
menos enquanto o desemprego ou a reforma antecipada não chegam. Numa sociedade
de trabalho em que este é tomado como dignificante e menos como esforço, como
pena imposta pelo regime de propriedade, a exibição dessa dignidade representa uma
captura ideológica; uma mansidão conveniente para que o capital continue o seu
processo de acumulação, com o mínimo de sobressaltos.
A questão não será
a falta de tempo mas a valorização que se atribui ao tempo disponível.
Longínquos vão os tempos em que os sindicatos anarquistas defendiam 8 horas
para trabalhar, 8 para estudar e 8 para descansar.
Nesse contexto a interpretação das realidades fica
dependente dos chamados mass media,
mormente da televisão, campo minado de conservadorismo, enviesamentos e
propaganda. Inversamente, a habitual prática da leitura em diagonal, da
observação superficial e apressada, embora possa ser pressionada pela falta de
tempo induzida pelo ritmo frenético das sociedades de capitalismo avançado,
tenderá a sedimentar-se e a redundar numa verdadeira iliteracia, elemento muito
desejado para efeitos de controlo biopolítico.
A iliteracia e a diagonalidade
alimentam-se mutuamente. Quem sofre da primeira pouco se dispõe a mudar a sua
prática e passar a informar-se condignamente e isso é tanto mais difícil quanto
a duração do tempo de perda de hábitos de estudo e ponderação, admitindo que
terão existido. Refira-se a propósito que a iliteracia é pior que o
analfabetismo uma vez que este é, geralmente assumido com modéstia ou pena e
devidamente credenciado pelas estatísticas. Por seu turno, a iliteracia não é
assumida, disfarça-se de dislates proferidos com ares de profundo entendimento
do tema e não consta dos formulários do recenseamento, uma vez que ninguém se
assumiria como portador de iliteracia. Sobretudo se licenciado ou doutorado.
Do ponto de vista do conhecimento, os sistemas
educativos, com relevo para a universidade, privilegiam as competências
técnicas, em áreas segmentadas e estanques, a inserir como peças na burocracia
empresarial ou estatal, tornando as pessoas, elementos conectados apenas
enquanto instrumentos de produção e afastados de qualquer concepção ou assunção
de cidadania. Onde esse afunilamento cognitivo possa falhar, aí é o campo de
intervenção dos especialistas de ciências políticas, sociólogos e psicólogos,
comentadores políticos e políticos chamados a comentar, que constituirão um
corpo de reinserção e afinamento da máquina de esmagamento do desejo de fuga ao
controlo biopolítico.
O santificado mercado adaptou-se rapidamente a esta
situação de real iliteracia ou diagonalidade.
As livrarias, onde se apalpa, folheia e se lê se o livro agrada ou não,
rareiam, não sendo substituídas pela encomenda via internet. No século XVI,
Lisboa com uma população muito inferior à actual e muitos analfabetos, tinha
onze livrarias. Quantas existirão agora?
Nas grandes cadeias distribuidoras, os livros dispõem-se
nos locais mais longe da entrada. O privilégio na visibilidade e acesso é dado
à venda de jornais e revistas, de aparelhos emissores de som e imagem, ao
multimédia. São as figuras de televisão – reais ou protagonistas das
telenovelas - que têm os lugares de honra nos escaparates dos supermercados,
precisamente porque são “leves”, evitam canseira às meninges.
A universidade, que sempre esteve ao serviço do poder,
tem-se mantido na vanguarda da produção e melhoramento da burocracia, do
controlo da imaginação. Tem manifestado um particular empenho em métricas para
a dimensão dos textos, do tipo e da dimensão dos carateres, na obrigação de
publicação regular em revistas científicas por mestrandos e doutorandos, depois
de validadas os textos pelas mais elevadas estirpes dos zeladores do
conhecimento conveniente[12].
Qualquer conteúdo técnico ou científico tem,
forçosamente, um abstract, com que se
pretende evidenciar o desejo de projetar a leveza do seu ser, permitir leituras
rápidas, sem detalhes, num género de sucedâneo de leitura em diagonal, mas, suficiente
para atrelar imensas páginas de referências bibliográficas, como se tivessem
sido objetos de estudo.
Esse espírito dito científico de síntese que se exprime
sob a forma de abstracts nos textos
universitários, têm como precursores as já velhas “Seleções do Reader’s
Digest”, compêndios de compilações de reacionarismo dedicados a quem tem falta
de tempo, aos Papalaguis do século XXI, aos conformados ou empenhados cultores
da diagonalidade.
Os poderes estatais, as classes políticas e as suas
burocracias são, por natureza, conservadores e reagem por instinto de
autodefesa às ideias e aos anseios que coloquem em causa ou se mostrem
desviantes face à norma por aqueles instituída e que visa a sua perpetuação como
elites credoras de riqueza, mordomias e vassalagens.
O livro, como a cultura em geral, tem tido muitos
adversários através dos tempos. A opinião discordante ou a estética ousada
sempre foram apontados com desprezo e desconfiança, quando não conducentes ao
trânsito para o patíbulo. Nos tempos que correm o patíbulo é, sobretudo, o
silêncio, a marginalidade, a ausência dos jornais ou da televisão, a
invisibilidade; inversamente, as presenças típicas no écran representam
garantidamente a passagem cordata no filtro das redações, a insuspeição de
dissonância opinativa ou estética, a integração ou a neutralidade face ao
sistema capitalista.
A Inquisição perseguia o que considerava herético ou
desviante, cujas diferenças podem ser ilustradas pelo castigo dado a Giordano
Bruno (queimado e com a língua pregada a uma tábua, para não ofender os algozes
com as suas heresias) e o tratamento dado a Galileu que aceitou, para salvar a
pele, perante os juízes, que afinal a Terra não girava em torno do Sol.
Foucault estava, ignorado, a lecionar em Tunes quando a revolução cultural de
Maio de 1968 o fez ganhar uma cátedra em Paris; antes, tivera o azar de não
agradar à direita gaullista nem ao mecanicismo determinista da “esquerda”
trotsko-estalinista.
Pouco depois da chegada dos humanos à Lua, a seita
Testemunhas de Jeová não aceitava o facto, por razões inscritas nessa
construção cabalística chamada teologia, não sabendo nós se isso já foi objeto
de revisão; a sorte dos descrentes nas prescrições das Testemunhas é que estes
nunca tiveram o poder temporal da Inquisição ou dos mullahs sauditas que
pretendem anular o ateísmo de Raif Badawi com mil chicotadas.
Estes tipos de atitude atrasaram a divulgação das ideias,
o avanço do conhecimento e das liberdades mas mostraram-se impotentes para as
abolir, sendo exemplar o caso do abade Meslier que viveu na transição do século
XVII para o XVIII.
Jean Meslier, padre na Champagne foi descobrindo que
todas as religiões são um embuste e escreveu, em segredo, um livro, considerado
como uma das obras mais precoces sobre o ateísmo na Europa. Quando morreu, o
notário cumpriu o testamento de Meslier e editou o livro que foi um sucesso,
mesmo que rapidamente perseguido pelas autoridades eclesiásticas; a sua fama
chegou à corte de Catarina da Rússia que mandou emissários a França para
adquirir o livro.
Spinoza, tomado como herético pela comunidade judaica de
Amsterdão, de onde era proveniente, foi objeto de um “banimento” onde constam
estas pérolas: “que ninguém lhe pode falar pela boca nem por escrito nem
conceder-lhe nenhum favor, nem debaixo do mesmo teto estar com ele, nem a uma
distância de menos de quatro côvados, nem ler papel algum feito ou
escrito por ele."
Orwell atribuiu a Wilbur, no seu 1984, o papel de funcionário da reescrita da História, como um
pequeno burocrata[13],
cronista sem outra autonomia que não a da glorificação do Grande Irmão. E a sua
margem de fuga ao controlo da vídeo-vigilância da teletela, era muito escassa, acabando por ser descoberto. O
Grande Irmão de hoje são os media, os
empórios do controlo social global (Facebook, Google…), em articulação com as
polícias e os poderes estatais e empresariais. Orwell adivinhava o papel da
televisão – então ainda não massificada e omnipresente - no controlo e
formatação das consciências. A sua riqueza cénica impôs-se e é hoje o principal
instrumento nessa formatação de um pensamento único que se pretende per saecula saeculorum.
O filme Farehneit 451 apresenta uma sociedade onde os
livros são proibidos, onde a crítica é eliminada e perseguida, onde os
espíritos livres e as cabeças pensantes são constrangidas a decorar os seus
conteúdos, a voltar à tradição oral dos tempos antigos, para partilharem ideias
e promoverem a sua transição Inter-geracional. A perseguição à crítica, ao
livro como suporte essencial da transmissão da dissidência, da diferença, é bem
simbolizada pelas imensas fogueiras onde os estudantes universitários nazis
queimavam livros, de escritores e intelectuais etiquetados como indignos,
proscritos por razões políticas, ideológicas ou de “raça”. Hitler e Mussolini
preferiam a rádio e as grandes multidões para eletrizarem multidões[14].
Nos tempos que correm, as taras religiosas, na Europa,
têm uma importância localizada para o controlo social e são as taras geradas
pelo mercado que mais afetam as pessoas e as confinam. Como as necessidades
extremas são marginais em muitos países e a contestação é frágil e esporádica não
se torna necessária uma atuação dos poderes baseada na agressão física brutal e
continuada; basta aplicar uma “engenharia do consentimento”[15],
proceder à gestão das pulsões de consumo e endividamento, através do marketing,
uma tese que se inclui no controlo biopolítico. No mesmo sentido se pode
incluir o papel dos sindicatos e das esquerdas institucionais, apostados na
concertação, na diluição dos descontentamentos, na sua mediação nos cenários
parlamentares e em negociações de com patrões e governos.
Este e outros textos em:
[1] Papalagui é o título de um livro de
Erich Scheurmann, de 1920
[2] No entanto, contagiou o … sistema
financeiro. Recentemente, os banqueiros e especuladores financeiros, mormente
os representados no BCE, observaram que o stress
tinha atingido os bancos. Como o stress
ao atingir os bancos havia produzido a crise financeira de 2007/8 e suas
sequelas sob a forma de dívida e austeridade, o BCE para poupar a população da
zona euro promove regularmente testes de stress
aos bancos. O diagnóstico não deve ser grande coisa pois só o descobriram no
BES quando a bancarrota desabou e no Banif a bancarrota aconteceu mesmo com um stress largamente diagnosticado. O stress aplicado aos bancos consiste na
avaliação da tensão que se pode registar entre as responsabilidades e os meios
para lhes fazer frente; e como os bancos constituem um sistema de entidades
imbrincadas umas nas outras, o BCE e seus próximos procuram estar atentos para
decretarem uma intervenção de dinheiros públicos, do país onde o banco
stressado tenha sede, por mais que se saiba que cada banco é apenas uma célula
do sistema financeiro.
[3] Para quem não se recorde, o
capitalismo existe, mesmo que raramente citado nos meios da direita política
ou, esquecido pelos da chamada esquerda, neste caso, substituído por uma
amálgama composta pela interação entre poderes de estado e medidas de recorte
keynesiano, tendo como pano de fundo a “democracia representativa”. O
capitalismo é pouco referido e menos ainda discutido. Eppur si muove, diria Galileu.
[4] A palavra subsídio usada para os
casos de doença, desemprego e outros é aviltante pois nada mais é que a
concretização de um direito que o seu destinatário tem, em função de valores
que previamente descontou aos seus salários, para utilização naquelas
eventualidades. Aplica-se às prestações de um sistema público mas já não às
prestações de quem tem um seguro de saúde privado. Presume-se que no primeiro caso há um beneficiário, um
inferior e no segundo um segurado, parte de um contrato entre iguais. A origem
latina em sub (abaixo) + sedere (sentar-se) é clara quanto ao cunho de inferioridade atribuída ao destinatário do
“subsídio”.
[5] Esta é uma das grandes trapaças do
discurso dominante, aceite e repercutido por direitas e esquerdas. Ninguém
investe para gerar emprego mas sim para produzir lucro, reproduzir capital; se
o investimento se materializa na produção de batata frita ou num negócio de
trabalho temporário, pouco importa, trata-se de uma escolha instrumental para a
finalidade de acumulação e o recrutamento de trabalhadores (a criação de
emprego, na gíria política) é um meio para aquele fim, um custo necessário como
o da energia, das matérias-primas, etc. Para mais, no actual contexto de selvajaria
neoliberal, a redução do desemprego quando ocorre, engloba uma redução do
salário do beneficiário da “criação de emprego” face à situação anterior; algo
que a esquerda do sistema e os sindicatos se “esquecem” de referir para poderem
assinalar uma vitória dos seus esforços a favor dos trabalhadores contra o
patronato.
[6] Nome de um mineiro soviético que
deu origem a um movimento de aumento da produtividade que demonstraria a
superioridade do regime soviético dirigido por Stalin. Passado o tempo da reconstrução
das imensas destruições e perdas de vidas resultantes da invasão hitleriana, a
URSS como modelo de capitalismo de estado estiolou e caiu, como Império do Mal
na lógica demente de Reagan, entre outros motivos, devido à baixíssima
produtividade. Em 1974/75, foi cumprido em Portugal “um dia de trabalho para a
nação”( 6/10/1974 e 10/6/1975) e uma “batalha de produção” sem que alguma vez
os governos tivessem posto em causa o capitalismo.
[7] Num auditório cheio onde estará
presente um mandarim ou uma personalidade mediática, a univocidade é a regra. A
solenidade institucional não permite diálogos com um presidente de república,
ou com o secretário-geral da NATO, por exemplo.
[8]
Perdeu-se o hábito da leitura em coletivo, sobretudo em família, como no
século XIX, porque o pequeno écran e o que vomita é bem mais eficaz na captação
e formatação das consciências por parte do poder e para mais facilita o
isolamento de cada um dos presentes.
[9]
A estória de uma fleumática inglesa após a primeira relação sexual é
sintomática: “What a ridiculous position in such a wonderful sensation”
[10]
Exceptuando as visualizações das condições em que num jogo de futebol
são marcados golos, assinaladas ou não grandes penalidades ou mostrados
devidamente cartões ou não mostrados quando o deveriam ter sido
[11] Giovanni Sartori, “Homo videns”,
ed. Terramar, 2000
[12] Assistimos recentemente a um debate
sobre os tenebrosos tratados patrocinados pelas multinacionais com vista a uma
unificação dos mercados (sempre eles!) europeu e norte-americano. Entre os
palestrantes estavam dois catedráticos, um deles que chegou a ser ministro e
ainda uma deputada europeia, cujas posturas não passaram de um situacionismo
mal informado, superficial e que encontrou nos alunos um conformismo tão
marcado que levanta dúvidas sobre o caráter e a formação das futuras elites
portuguesas.
[13]
A língua castelhana tem um delicioso vocábulo para designar um diligente
e formatado funcionário da baixa burocracia - chupatintas
[14] O elitismo de Salazar era bem
conhecido. Detestava multidões e o populismo (considerava Hitler um louco) e as
suas alocuções eram produtos intelectuais, sem berros ou palavras de ordem, que
grande parte da população não entendia.
[15]
Tem como um dos seus principais expoentes Edward Bernays
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