Autora:
Rosário Caetano
“Os sacrifícios e jogos
que se celebravam nos locais funerários como festas dos mortos produziram
finalmente a forma secularizada da religião: a sociedade de trocas.”
Horst Kurnitzky, Estrutura
libidinal do dinheiro
Regimes de troca
“Se não houvesse troca,
não haveria comunidade.” (Aristóteles, Política, 1133b) Os indivíduos sempre trocaram coisas entre si,
sempre pediram e ficaram a dever coisas uns aos outros. Se alguém receber alguma coisa do seu vizinho,
ao aceitá-la, fica em dívida. Em abono desse vizinho, pagará essa dívida com
uma “palavrinha” (o tal “obrigado”) e com outro presente, devolvendo o estado
de dívida à outra parte. O objetivo final não é o pagamento total das dívidas,
mas sim fortalecer as relações sociais através de um sistema de crédito -
dívida e obrigação - baseado na confiança e nos valores da sociabilidade em
geral.
Este estado permanente de desequilíbrio (crédito-débito-crédito…) é o mesmo
que faz funcionar o universo, criando a complexidade e o movimento. Um
organismo homeostaticamente equilibrado estaria parado. A dívida, nessa
perspetiva, é uma forma de transformar o desequilíbrio originário da sociedade
em produtividade e desenvolvimento.
Mas como se organizavam essas trocas entre “vizinhos”? Como evoluíram até
se tornarem trocas impessoais? De que forma refletiram – e fizeram refletir – a
evolução social e política da sociedade? E como contribuíram para estruturar a
oikonomia enquanto organização material da vida do homem?
Um autor historicamente bem colocado para nos fornecer importantes pistas
para uma compreensão destas questões, tendo no decurso da sua vida presenciado
e refletido sobre a emergência do mercado, é Aristóteles. Considerado o
primeiro, e praticamente único, autor da Antiguidade a desenvolver os
fundamentos de uma análise económica, “Aristóteles descobre a economia”
(Polanyi, 1957), apesar de apresentar o seu pensamento económico num livro
sobre política (Política) e noutro sobre ética (Ética a Nicómaco).
Mesmo posteriormente, durante toda a Idade Média, os breves textos aristotélicos dedicados
à economia, à troca e ao dinheiro converteram-se num canon sobre estes assuntos. Ainda de acordo com Polanyi (1957), a
influência que este filósofo exerceu sobre a economia medieval foi tão
importante como a que posteriormente Adam Smith e David Ricardo exerceriam
sobre a economia mundial do século XIX.
Especificamente no caso da dívida, o pensamento de Aristóteles
também viria a influenciar toda a tradição medieval de condenação à prática da
usura, designadamente através de S. Tomás de Aquino
(Le Goff, 1987), que se referia sempre a Aristóteles como
"o Filósofo”.
Com a chegada das
doutrinas modernas, a influência do aristotelismo económico, salvo importantes
exceções, viria a ser depreciada e esquecida até praticamente desaparecer em
virtude do seu carater rudimentar e inadequado. Evidentemente que, em termos
gerais, a teoria económica moderna não poderia ter a expectativa de beneficiar
do Livro I da Política ou do Livro V
da Ética a Nicómaco, uma vez que esta
teoria económica visava, em última análise, elucidar os mecanismos de mercado,
identificando até a própria economia com a sua forma de mercado, teoria que "o Filósofo” não sobrescrevia.
Pese embora esta desvalorização,
Polanyi (continua a) considera(r) que vale a pena conhecer o pensamento de
Aristóteles, como o de alguém que penetrou profundamente na organização
material da vida do homem, e que o fez com um “radicalismo que nenhum autor
posterior igualou” (Polany, 1957, p. 66).
Mas, para o compreendermos verdadeiramente esse “radicalismo”, é
necessário recuar no tempo para se perceber de que forma Aristóteles pensou
acerca daquilo a que chamamos “economia”.
Nesse “recuo”, Polanyi
identificou a razão do equívoco na crítica dos economistas modernos à teoria de
Aristóteles, o qual reside no facto daqueles não terem compreendido que nas
suas observações a respeito da economia, Aristóteles estava a destacar a sua
vinculação ao conjunto da sociedade. Isto é, uma das grandes dificuldades para
a moderna racionalidade económica em compreender Aristóteles, ou para
reconhecer o seu pensamento como económico,
encontra-se no facto de não considerar que no pensamento deste filósofo a
economia está interligada com o resto da sociedade. Esta ‘economia’ não é um
processo de satisfação de necessidades, mas uma componente da cultura, ligada
ao processo de vida material da sociedade, ao contrário da economia do século
XIX, que veio a constituir-se como uma ciência autónoma, que tinha como
referente uma economia totalmente “desincrustada” das outras instituições
sociais.
A ferramenta concetual
que nos pode ajudar a compreender o funcionamento da ‘economia’ na sociedade
antiga e, com isso, produzir uma outra apreensão da relação entre a economia
dos antigos e o capitalismo moderno, é a análise institucional de Polanyi[1], que se baseia no
estudo das instituições, ou do fundamento institucional, da economia.
No âmbito desta análise devemos desfazer-nos da ideia habitual de que a economia
é uma atividade que os seres humanos sempre reconheceram como tal. Pelo
contrário, os factos económicos, na sua origem estavam incrustados em situações
que não eram em si mesmas de natureza económica. O conceito de economia foi
evoluindo com o tempo e com a história. Nesse sentido, o que Polanyi procura
são os instrumentos concetuais capazes de atravessar o labirinto de relações
sociais nas quais a economia simplesmente estava inserida, partindo da ideia de
que nas economias pré-capitalistas o processo económico encontrava-se disperso
por diversas instituições, não sendo possível desvincular os fatores económicos
dos fatores sociais, éticos e políticos. De facto, para Aristóteles, a economia
estava incluída, e até subordinada, às instituições éticas e sobretudo
políticas. De resto, para este filósofo, o homem sendo um animal económico, um
ser da casa (oikos) “é, por natureza, um “animal político” (“zoon politikon”) (Aristóteles, 1998,
1253a).
Polanyi considera que é
importante não perder de vista esta visão aristotélica da economia como um
processo social, apesar de todo o empenho dos economistas modernos para
considerá-la como natural e isolada da sociedade, bem como dos seus esforços
para naturalizar a própria ideia de mercado, considerando-o como ahistórico e
omnipresente. E por essa via Polanyi reconhece a pertinência, e a atualidade,
de Aristóteles como um pensador que oferece, não tanto um contributo formal às
teorias económicas do mercado, mas uma compreensão da oikonomia num quadro de
referências muito abrangente, e que inclusivamente a distingue daquilo que
considera não ser sequer economia (como a “crematística”). Na obra de Polanyi,
Aristóteles foi, de facto, um pensador que produziu uma enorme influência.
Segundo Polanyi, “a célebre distinção que Aristóteles apresenta no capítulo
introdutório da Política entre a administração doméstica propriamente dita e a
atividade de fazer dinheiro foi provavelmente a indicação mais profética que
alguma vez nos deu o domínio das ciências sociais e continua a ser a melhor
análise do problema de que dispomos.” (Polanyi, 2012, p. 189-190)
Certamente que à “melhor
análise do problema” não terá sido indiferente o facto de Aristóteles ter
vivido numa circunstância histórica única, que lhe permitiu testemunhar a primeira
aparição do mercado na história da civilização. Aristóteles foi uma testemunha
presencial do nascimento de um novo sistema económico-social complexo, ainda em
estado puro, na fase embrionária da sua emergência.
No entanto, a origem da
própria instituição do mercado “é, em si mesmo, um assunto obscuro e subjetivo.
É difícil traçar o seu começo histórico com precisão e ainda mais difícil
seguir o rasto da evolução das formas iniciais de comércio para o comércio de
mercado.”[2] (Polanyi, 1957, p. 83)
Mas, nessas formas
iniciais de troca direta, Polanyi, que põe em relação autores muito distantes
no tempo, considera que “nada parece ser menos apelativo para o filósofo da gemeinschaft
(“comunidade”, em alemão no original) do que a propensão smithiana alegadamente
inerente ao indivíduo” (Polanyi, 1957, p. 88). No livro I da Política, numa
passagem central para esta questão, Aristóteles considera que a troca resulta
não de algo semelhante à referida “propensão smithiana”, mas das necessidades
relacionadas com o crescimento da família[3],
que originalmente partilhava as mesmas coisas. “É manifesto que a troca
não tem, obviamente, qualquer função na primeira forma de comunidade, i. e., a
família, mas apenas quando a comunidade cresce. No primeiro caso, os membros partilham
as mesmas coisas; depois, quando vivem separados, continuam a partilhar muitos
bens mas trocam outros consoante as necessidades, como ainda hoje fazem os
povos bárbaros que recorrem ao sistema de troca, limitando‑se a trocar produtos
úteis; por exemplo, recebem e trocam vinho por trigo e outras coisas desta
espécie.” (Aristóteles, 1257a) Nesse mesmo sentido,
acrescentou ainda que “esta técnica de troca não é nem contrária à natureza nem
tão pouco a qualquer tipo de crematística, mas serve para preencher lacunas na
autossuficiência natural. Sendo assim, foi a partir dela que surgiu,
logicamente, a técnica de adquirir.” (Aristóteles, 1998, 1257a)
Deste modo, o comércio
por troca direta nasceu da instituição da partilha de bens necessários à vida.
O objetivo dessa troca direta era garantir aos “senhores da casa”[4]
(“oikonomikon”) o fornecimento
suficiente para aprovisionar todas as necessidades[5]. Cada um deles facultava os seus excedentes a um outro oikonomikon desprovido desse bem
necessário, mas apenas à medida das necessidades, que assim constituíam o
limite natural dessas transações. O processo de intercâmbio tenderia para uma
divisão mútua, uma vez que, no seu decurso, acabaria por beneficiar todas as
partes.
Certamente que nesse
processo não se pode esperar que alguém dê os seus produtos sem receber nada em
troca. “De facto os indigentes que não possuem nada em troca têm que trabalhar
devido à sua dívida (daí a grande importância social da instituição da servidão
por dívidas)”. (Polany, 1957, p. 90) E daí também, refira-se, o interesse
social no cancelamento dessas dívidas (Graeber, 2011). E a este propósito o
próprio Aristóteles menciona na Constituição
dos Atenienses (Politeia) as leis
de Sólon, que “procedeu à abolição das dívidas” (Aristóteles, 2003, 10, p. 35).
Retomando o aspeto
anterior, sublinhe-se a ideia segundo a qual tudo o que fosse necessário para
continuar e manter a comunidade, incluindo obviamente a sua autossuficiência (autarcia) seria “natural” e
intrinsecamente bom. Esta ideia implica ignorar, e mesmo condenar, qualquer
função do comércio para além de contribuir para essa autossuficiência. Implica,
portanto, não considerar que o comércio possa ser uma função do mercado. Assim,
naquelas condições primitivas de troca, a obrigação no intercâmbio entre oikonomikons, limitava-se às
necessidades detetadas e as transações deveriam realizar-se com base em valores
equivalentes. A troca “tem a sua origem no facto natural de os homens possuírem
mais ou possuírem menos do que é suficiente” (Aristóteles, 1998, 1257a), sendo
estes, portanto, “compelidos a fazerem trocas na medida necessária da
satisfação das suas carências” (Aristóteles, 1998, 1257a).
A teoria de Aristóteles
acerca das trocas comerciais não é senão uma expressão da sua teoria mais geral
sobre a comunidade humana. “Comunidade, autossuficiência e justiça são os
elementos centrais do quadro de referências do pensamento de Aristóteles nos
assuntos da economia.” (Polanyi, 1975, p. 80) Daí encontrarmos os seus textos
de economia em livros sobre política e ética.
Mas para que exista comércio, para que uma coisa possa entrar
numa relação de troca com outra, existe um problema que deve ser resolvido
previamente: o da determinação do valor dessas mesmas coisas, condição para o
seu intercâmbio. “Tudo o que pode ser trocado tem de ser de algum modo
comparável” (Aristóteles, 2004, 1133a), ou seja, é preciso determinar qual o
padrão de comensurabilidade[6] que permita a troca
entre coisas diferentes mas em valores equivalentes.
Com a questão da
determinação do valor, Aristóteles pretendia responder a dois problemas
distintos: um de natureza económica, o de viabilizar a própria troca, e
(sobretudo) outro de natureza ético-política, o de garantir a justiça na troca,
isto é, de assegurar a troca de equivalentes, para que nenhum dos lados envolvidos nessa relação de troca perdesse, ou sequer ganhasse. No
fundo, trata-se de saber como ajustar os atos de troca na estrutura da
(autossuficiência da) comunidade, salvaguardando sempre o princípio da troca
“natural”.
Sendo a troca um dos elementos estruturantes da comunidade, Aristóteles compreende
que o problema da determinação do valor é um elemento indispensável para
compreender a natureza dessas relações de troca que os cidadãos estabelecem
entre si[7].
E por essa razão, a análise sobre o padrão de comensurabilidade para o
intercâmbio reveste-se do maior interesse político. A troca é reciprocidade,
constituindo a base da associação da própria comunidade, porque “se não houvesse troca,
não haveria comunidade, e se não houvesse igualdade, não haveria troca, tal
como se não houvesse comensurabilidade não haveria igualdade” (Aristóteles,
2004, 1133b).
Por volta do século IV a.C. já existia uma razoável circulação de dinheiro,
justamente “inventado em vista da troca” (Aristóteles, 2004, 1133a), pelo que é natural que
Aristóteles reconheça a moeda como medida para essas trocas. No entanto, a
moeda não representa mais do que um “mediador”, não podendo assim constituir o
tal padrão de comensurabilidade
que procurava. Essa medida-padrão será encontrada na “necessidade”.
“Se as pessoas não tivessem nenhuma necessidade, ou, então, não a tivessem de modo semelhante, das duas uma: ou não haveria
troca de serviços ou seria uma troca com um sentido diferente. O dinheiro tornou-se
como que o representante da necessidade”. (Aristóteles, 2004, 1133a)
Mas, neste caso, mais
relevante do que reconhecer neste ou naquele elemento a medida-padrão, é a
preocupação que Aristóteles revela pela justiça na troca. A instituição da troca
de equivalentes surgiu para garantir a justiça no processo de troca “natural”
entre os oikonomikons. A troca era
encarada como parte do comportamento de reciprocidade, fundamental para a
coesão da polis, uma vez que “é
também devido a esta retribuição proporcional que o Estado mantém a sua
existência conjunta.” (Aristóteles, 2004, 1133a)
Na Ética a Nicómaco, a referência ao “santuário das Graças”, fornece uma clara ilustração do
significado e da importância de reciprocidade para os gregos. O benefício deste
santuário, erigido pelos cidadãos, era o de garantir que houvesse “retribuição
pelos favores recebidos, (pois), é isso mesmo que é peculiar e próprio do dar
Graças: que se deve retribuir com um serviço em troca do favor que alguém nos
prestou, e até numa outra ocasião tomar a iniciativa de fazer um favor a
alguém.” (Aristóteles, 2004, 1133a)
Obtida a resposta à
questão sobre o padrão de comensurabilidade que viabiliza a troca - a
“necessidade” -, torna-se necessário analisar um outro problema fundamental
decorrente deste: o de saber se, dispondo de um padrão, essas trocas que
efetivamente se realizam são, de facto, justas. O problema que agora se coloca
a Aristóteles é o da natureza, ou “finalidade”, da troca.
A finalidade que
perpassa a esfera dessa troca tanto pode assumir a forma “doméstica” (oikonomia), que visa a satisfação das
necessidades familiares (oikos) ou da
comunidade política (polis), como
pode assumir a forma “mercantil” - a “crematística”-, cujo fim, muito distinto
do anterior, é o da acumulação de riqueza.
Aristóteles opõe a
economia à crematística. Existe uma diferença fundamental entre a primeira,
realizada no âmbito de uma troca “natural”, “necessária e recomendável”, e a
segunda, uma troca “não natural” e até “censurável devido a (…) ser praticada
por uns a expensas de outros.” (Aristóteles, 1998, 1258 b)
No entanto, é preciso ter em atenção que a crematística é dupla: uma parte
pertence ao comércio e a outra é da esfera doméstica, pertencendo à economia.
De facto, sendo a crematística uma forma especulativa e convencional (“não
natural”) de obtenção de riqueza, Aristóteles consente nessa artificialidade quando esta se
destina à aquisição de bens necessários para a satisfação de necessidades
humanas e que a natureza não proveu num determinado lugar. Por isso,
Aristóteles não condena a “forma doméstica da crematística que persegue um fim
distinto da acumulação de dinheiro” (Aristóteles, 1998, 1257b). Portanto, o comércio é “natural” quando serve a sobrevivência da
comunidade, em benefício da autossuficiência.
Como forma de dirimir a confusão entre economia e crematística, ainda no
Livro I da Política, Aristóteles
aborda um outro importante problema, o da distinção entre “uso próprio” e “uso
não próprio” das coisas, ou, se quisermos, numa versão mais atualizada, a
distinção entre valor de uso e valor de troca.
Polanyi considerou que a distinção entre o princípio do uso e o princípio do lucro seria
a chave de Aristóteles para compreender a nova civilização, dois mil anos antes
do seu advento. Refere inclusivamente que, a partir desta questão, Aristóteles
previra as consequências humanas da atividade orientada para a aquisição de
dinheiro, com enorme exatidão nas suas grandes linhas a partir da economia de
mercado rudimentar a que tinha acesso (Polanyi, 2012 p. 191).
Segundo Aristóteles, cada coisa possui
dois valores, ou dois “modos de uso”: um
“uso próprio”, ou “adequado” e um uso “não próprio”, ou “não adequado”. Assim,
“por exemplo, uma sandália tem dois modos de uso: como calçado e como objeto de
troca. Ambos são modos de utilização da sandália; aquele que troca uma sandália
por dinheiro ou alimento (…) não faz o uso próprio da coisa; é que esta não
existe para ser trocada.” (Aristóteles, 1998, 1257a).
Portanto, usar a sandália como calçado
remete para o seu valor de uso, vendê-la remete para o
seu valor de troca. Neste caso, a relação comercial do sapateiro que vendeu a sandália foi a seguinte:
Mercadoria (sandália) – Dinheiro (recebe em troca uma quantidade de moeda) –
Mercadoria (com o dinheiro obtido poderá comprar outro produto para satisfazer
uma necessidade, por exemplo trigo). Em sínteses, transpondo para o esquema de
Marx, obtém-se: M-D-M.
Este pequeno comércio não pertence, por
natureza, à crematística, umas vez que as trocas se referem apenas ao
necessário para compradores ou vendedores. Nesta forma de relação comercial,
onde predomina o valor de uso, é
importante notar que os extremos são qualitativamente
diferentes: troca-se a sandália por trigo, ou seja, realiza-se uma venda para
que se possa comprar algo diferente do que se vendeu. De acordo com uma
observação de Marx[8], há
uma finalidade, situada fora desta operação, a saber, a satisfação de
determinadas necessidades isto é, o uso, ou, se quisermos, o consumo, onde se realiza
o valor de uso.
A troca veio a ganhar importância apenas com o aumento da complexidade do
comércio, no qual “o uso da moeda foi adotado sob a pressão dessa necessidade”,
(Aristóteles,
1998, 1257a), isto é, ainda
como facilitador das trocas. Até aqui, de uma forma geral, a troca continua
no âmbito da economia (oikonomia).
Entretanto, com o passar do tempo, aquilo que era “uma simples troca,
tornou-se mais sofisticado, quando a experiência ensinou a fonte e os métodos
de troca a partir dos quais se obteria o maior lucro” (Aristóteles, 1998, 1257b). O dinheiro que “foi inventado devido às necessidades de troca” (Aristóteles, 1998, 1257a), e portanto considerado apenas como “medida para todas as coisas” (Aristóteles, 2004, 1133a), poderia, a partir de agora, servir também para o enriquecimento
por meio do lucro. E é justamente “quando denuncia o princípio da produção com
vista ao lucro “como não natural no homem”, que Aristóteles identificava, de
facto, o ponto fundamental - ou seja, o divórcio entre a motivação económica e
todas as relações sociais concretas que, pela sua própria natureza, impõem a
sua limitação.” (Polanyi, 2012, p. 191)
De facto, com a invenção da moeda, o comércio de troca conheceu
necessariamente um grande desenvolvimento, e o dinheiro, contrariando o seu uso
originário e “natural”, constitui-se em instrumento de crematística, não já a
arte da aquisição, mas a de multiplicar o dinheiro. E para “multiplicar o
dinheiro” existe até mais do que uma forma, designadamente, comprar as coisas
para voltar a vendê-las (Dinheiro – Mercadoria – Dinheiro aumentado) ou
emprestar, e, após o prazo definido, receber o dinheiro devolvido com juros
(Dinheiro – Dinheiro aumentado). Ou de forma mais esquemática, respetivamente:
D-M-D’ e D-D’[9]. De facto, o “capital comercial” e o “capital usurário” “aparecem ambos historicamente antes da moderna forma
básica do capital” (Marx, 1990, p. 191).
Nos circuitos D-M-D’ e D-D’, a única diferença entre eles encontra-se no
facto de, no primeiro caso, existir um intermediário (a mercadoria), enquanto
em D-D’ não há qualquer mediador, apenas uma pessoa que empresta dinheiro a
outra, cobrando juros.
No circuito anterior (M-D-M), o dinheiro é apenas medida ou simples meio de
troca, ou de pagamento, de mercadorias. Já nos circuitos D-M-D’ ou D-D’, o
dinheiro tem como finalidade a valorização: o dinheiro vale como medida ou meio
de troca mas, principalmente, vale como fim em si mesmo, a troca serve somente
para a realização, e acumulação, de dinheiro. Neste caso, os dois extremos do
circuito são os mesmos: dinheiro. Por serem da mesma natureza, os extremos
diferenciam-se apenas quantitativamente,
isto é, nesta operação há um acréscimo de dinheiro, sem mudar a sua qualidade.
“Como valores de uso, as mercadorias são, antes de tudo, de diversa qualidade;
como valores de troca, apenas podem ser de diversa quantidade, não contendo,
portanto, átomo algum do valor de uso.” (Marx, 1990, p. 48)
A circulação do dinheiro, que teve origem na simples, e cada vez mais
longínqua, troca “natural” para prover bens essenciais em falta, entra agora
numa nova fase: a multiplicação sem circulação de um produto específico. O
último e mais complexo circuito do valor de troca é o circuito
Dinheiro-Dinheiro aumentado. E por isso, “com muito mais razão se detesta a prática de cobrar juros,
porque nela o ganho resulta do dinheiro propriamente dito e não da finalidade
para a qual o dinheiro foi instituído. Ora o dinheiro foi instituído para
troca, enquanto o juro multiplica a quantidade do próprio dinheiro, (…) é
dinheiro nascido do dinheiro. Assim, de entre todos os modos de adquirir bens,
este é o mais contrário à natureza[10]”
(Aristóteles, 1998, 1258b).
Esta qualidade da usura,
a de ser o modo de adquirir bens “mais contrário à natureza”, advém-lhe do
facto de desprezar dois princípios fundamentais. Por um lado, desrespeita o
carater “natural” da troca entre os “senhores da casa”, na qual o dinheiro tem
como função servir como meio de pagamento, não podendo multiplicar-se[11];
e, por outro lado, desrespeita a reciprocidade, desprezando a justa
equivalência na troca, na medida em que a usura gera um excedente ilegítimo,
“dinheiro nascido do dinheiro” (e
daí a origem da palavra “juros” (tokos)
relacionada com os conceitos de “gerado”, “filho”, “criança”). Os juros
resultantes da prática da usura são a própria expressão da não equivalência da
troca, de uma injustiça[12],
portanto. E essa injustiça repercute-se negativamente na coesão da comunidade,
pois o juro desloca dinheiro
de uns para os outros,
gerando riqueza monetária para uns em detrimento de outros (daí a instituição da servidão
por dívidas e o interesse social no seu cancelamento).
A grande distopia do Mercado
Apesar de Aristóteles, no seu contexto histórico, não poder estimar a
verdadeira dimensão das transações monetárias originadas nos juros, para que,
dessa forma, pudesse inferir o quanto a prática da usura iria influenciar e
transformar a estrutura da polis,
ainda assim, a usura é para Aristóteles, o estádio mais avançado – e mais
deturpado - da crematística, é o término de um caminho que começou com a
simples troca entre bens necessários. O “Filósofo” pressentia claramente a ameaça social da
crematística, na qual “parece não existir limite nem de riqueza nem de
propriedade” (Aristóteles, 1998, 1257a).
Aristóteles analisou as
práticas sociais nas quais a moeda fosse de uso imprescindível, pretendendo
descobrir como resolver o problema dos homens usarem o dinheiro nos processos
de intercâmbio comercial sem ser dominados por ele. “Só um senso comum genial
seria capaz de sustentar, como Aristóteles fez, que o lucro era uma motivação
peculiar da produção para o mercado e que o fator monetário introduzia um novo
elemento na situação, sem que isso, enquanto os mercados e o dinheiro se
mantivessem como aspetos subsidiários de uma administração doméstica que
permanecesse autossuficiente, impedisse que o princípio continuasse a ser a
produção com vista ao uso.” (Polanyi, 2012 p. 190)
Daí as preocupações de Aristóteles com o padrão de
comensurabilidade, a sua condenação da crematística, que contrariava perigosamente
a finalidade intrínseca do carater convencional da moeda - o de operacionalizar
a prática mercantil facilitando as transações indispensáveis à família e à polis -, bem como a sua reprovação dos juros, resultantes da usura, como prática típica da crematística
comercial. A multiplicação da moeda produz uma inversão nos objetivos,
essencialmente políticos, da troca reciproca, fundamento da vida social. E esse é o
grande receio de Aristóteles, que antevê a ameaça ao modo de vida predominante
naquela estrutura política, que pode mesmo conduzir à ruína dos cidadãos.
Aristóteles compreendeu que a crematística começava a colocar em
risco aqueles que eram os elementos de referência no seu pensamento sobre as
questões económicas (comunidade, autossuficiência e justiça). De acordo com a
interpretação de Polanyi, tanto na oikos,
como na polis existia uma espécie de philia específica da koinonía (comunidade), sem a qual o
grupo não poderia subsistir. Aquela philia
expressava-se numa conduta de reciprocidade, enquanto disposição tendente à
partilha. (Polanyi, 1957, p. 79) E por essa razão, tudo o que era necessário
para a continuidade e manutenção da comunidade e que garantisse a justiça era
“natural”, necessário e intrinsecamente bom para a continuidade do coletivo
social.
Hoje, séculos e séculos depois, aquilo que consideramos natural” é
muito diferente. Em plena sociedade de
mercado, o que reconhecemos como absolutamente normal é, por exemplo, o pagamento da dívida. A avaliar pela
prática discursiva, tendemos mesmo a considerar que se trata de uma questão de
justiça natural, porventura tão
natural como era a escravatura para Aristóteles. Daí o “contrassenso” em
falar-se em justiça natural[13].
Em matéria de economia, podemos valorizar ou não os ensinamentos
do “gigante do pensamento”, como chamou Marx a Aristóteles (1990, p. 98) mas,
em qualquer dos casos, desses “ensinamentos” retiraremos sempre a constatação
de que existem - porque assim existiram - outras formas de pensar a relação da
economia com a política, de conceber a finalidade do dinheiro, de considerar a
relação entre o indivíduo e a comunidade, ou mesmo de compreender a
importância, ou possivelmente a necessidade, da anulação das dívidas, e assim por
diante. Por isso, o atual modelo económico (mas também político, ético e
social), assente na “economia de mercado” não constitui uma “ordem natural das
coisas”, por mais que os primeiros economistas modernos “ansiassem por
descobrir uma lei da sociedade tão universal como a lei da gravitação da
natureza” (Polany, 2012, p. 273).
Não sendo natural, e
muito menos única, é ainda questionável que a utopia (distopia) da “sociedade
de mercado” seja sequer realizável sem um enorme grau de devastação. “Permitir
que seja exclusivamente o mecanismo do mercado a governar o destino dos seres
humanos e o seu meio natural (…) teria por resultado a destruição da
sociedade. (…) Despojados da proteção das instituições culturais, os seres
humanos pereceriam, vítimas dos efeitos da sua exposição à sociedade; morreriam
devido à desagregação social extrema causada pelo vício, o crime e a fome. A
natureza ver-se-ia reduzida aos seus elementos, o meio circundante e as
paisagens seriam vítimas da contaminação, os cursos de água seriam devastados
pela poluição, a segurança militar estaria comprometida, a capacidade de
produção de alimentos e matérias-primas sucumbiria à destruição.” (Polany,
2012, p. 216)
Este efeito devastador que, salvo interferências de outras
forças contrárias, conduz à destruição da sociedade e da natureza é, em larga
medida, resultado da conversão em mercadorias de certos elementos que, em si
mesmo, não são mercadorias: a terra, o trabalho e o dinheiro.
A mercadoria desempenha neste processo um papel fundamental. “É
apoiando-se no conceito de mercadoria que o mecanismo de mercado se insere nos
diversos elementos da vida industrial. As mercadorias são aqui empiricamente
definidas como objetos produzidos com vista à venda no mercado”. (Polany, 2012,
p. 214) Uma economia de mercado - autorregulada - requer que todos os bens
funcionem enquanto mercadorias, algo produzido para a venda, pois só
assim podem estar sujeitos ao mecanismo da oferta e procura, com intermediação
do preço, o
que exige, para os atos de intercâmbio, que todas as unidades económicas
intercambiáveis tenham necessariamente que ser quantificadas.
Mas a conversão de elementos básicos da vida social – a terra, o homem e a
moeda – em mercadorias é, de acordo com Polanyi, uma falsa conversão, no
sentido em que mesmo tratados como tal, não são mercadorias, não são produzidos para
venda. São, na verdade, mercadorias fictícias: “o trabalho, a terra e a
moeda não são, evidentemente, mercadorias: o postulado segundo o qual qualquer
coisa que seja comprada e vendida tem de ter sido produzida a fim de ser
vendida é rotundamente falso no que se lhes refere. Por outras palavras,
segundo a definição empírica de mercadoria, não são mercadorias. O trabalho é
somente outro nome de uma atividade humana que acompanha a própria vida, a
qual, por seu turno, não é produzida para venda, mas por razões inteiramente
diferentes, acrescendo que a atividade em causa não pode ser desligada do
resto da vida, para ser armazenada ou mobilizada; a terra é somente outro nome
que damos à natureza, que não é produzida pelo homem; a moeda efetivamente
existente, enfim, é tão-só um símbolo do poder de compra, o qual, em regra, não
é produzido, mas resulta de uma criação da banca ou das finanças do Estado.
Nenhum dos três elementos - trabalho, terra, moeda - é, portanto, produzido
para venda: a sua descrição como mercadorias é inteiramente fictícia.” (Polany,
2012, p. 215)
A inserção do mecanismo
de mercado nos diversos elementos da vida viria, então, a produzir a grande transformação. Sendo verdade que
nenhuma sociedade pode existir sem uma ou outra forma de economia, que assegure
e organize a produção e a distribuição bens, isso não significa que o processo
económico tenha uma existência independente do tecido social, ecológico e tecnológico,
como veio a acontecer com forma económica de mercado.
De facto, na forma-mercado, o seu funcionamento é completamente
distinto das outras três formas anteriores[14]
de integração da atividade económica, nas quais a economia era simplesmente uma
das funções da ordem social. Sob as condições “da tribo, do feudalismo ou do
mercantilismo”, não existia um sistema económico separado, em nenhuma delas se
pode observar a existência de uma atividade económica desligada do resto das
atividades que estruturam a sociedade com um significado próprio e regulada por
instituições e leis específicas. Só numa economia de mercado é que “em vez de
existir uma economia incrustada (“embedded”)
nas relações sociais, são as relações sociais que são incrustadas no sistema
económico.” (Polany, 2012, p. 194”).
A sociedade do século XIX[15],
que estabeleceu a atividade económica com instituições e comportamentos
diferenciados e isolados do resto das instituições e comportamentos sociais e
políticos, constituiu uma inovação.
Política e sociedade ficaram institucionalmente separadas do
mercado, mas a sua configuração e dinâmica encontram-se determinadas por ele, a
instituição do mercado ocupa o centro da organização social. E a partir desse
lugar privilegiado atua sobre o
resto das instituições, de modo a que acaba por
configurá-las de acordo com as condições do seu funcionamento.
Mas, a economia de mercado não nasce espontaneamente, pelo
contrário, requer estruturas de apoio (legislação, instituições, códigos,
teorias, conhecimentos, atores…) sem as quais não seria possível a sua
constituição. A destruição das bases tradicionais da sociedade para a criação
de um mercado autorregulado, exigiu a participação do poder político do Estado
para a aplicação dos seus postulados, para criar e manter a “utopia” do
liberalismo. A autorregulação não
pode dar-se sem ser acompanhada da ação do Estado no ajuste de uma série de
mecanismos institucionais e de comportamento humano, designadamente na garantia
do direito à propriedade, para referir apenas um exemplo de um dos
pré-requisitos fundamentais.
Esta ideia contrapõe-se ao pressuposto de que a organização
social é o resultado natural de
interações entre indivíduos, que dão lugar ao desenvolvimento, também ele
espontâneo, de estruturas sociais ordenadas num processo evolutivo no qual o
expoente final e mais evoluído seria a própria economia de mercado. O que
existiu foi um processo histórico de construção de instituições com um
determinado conteúdo, por mais que o credo liberal “ansiasse descobrir uma lei
da sociedade tão universal como a lei da gravitação da natureza” (Polany, 2012,
p. 273).
Para esse “credo”, a sociedade deveria ser ela própria como que
uma parte da natureza. E se a natureza se encontrava regida por leis imutáveis,
o mesmo tinha que se verificar na sociedade. “A natureza biológica do homem
parecia o fundamento de uma sociedade que deixara de ser uma ordem política.
(…) A lei da população de Malthus e a lei dos rendimentos decrescentes
formulada por Ricardo tornavam a fertilidade do homem e do solo os elementos
constituintes de um novo domínio da existência até então não reconhecido. Emergira
a sociedade económica enquanto realidade distinta do Estado político.” (Polany,
2012, p. 275)
Assim, se havia pobres (e havia muitos) e se a sua situação não
melhorava, ninguém tinha culpa e a política nada podia fazer, a sua existência
fazia parte de uma ordem natural, e como toda a ordem natural é não só
irreformável como bem ordenada. “A solução seria que deixassem de existir a fixação
de salários, a assistência prestada a desempregados válidos, e também salários
mínimos ou outras medidas que assegurassem o «direito à vida». O trabalho teria
de ser tratado como aquilo que era - ou seja, uma mercadoria cujo preço será
estabelecido pelo mercado. As leis do
comércio eram as leis da natureza e, por conseguinte, as leis de Deus.
(Polany, 2012, p. 276-7) (Itálico nosso)
O homo economicus
longe de ser o núcleo fundamental e originário da natureza foi o resultado de
uma violenta institucionalização, que não só o integrou no mercado, mas também
impôs que permanecesse nele, através de um contínuo e sustentado esforço
político de disciplinamento e vigilância, para uma legitimação desse processo.
As diferentes formas de integração não só deram lugar à produção e consumo de
bens, como também à construção do próprio sujeito, como veremos de forma mais
desenvolvida no capítulo 4.
Surge assim o caráter artificial e a base política da economia
de mercado, isto é, a sua criação através de processos políticos centrados no
exercício do poder, frequentemente de forma violenta, conforme teremos
oportunidade de voltar a referir no capítulo 3.
“A descoberta da economia
foi como que uma revelação assombrosa acelerando fortemente a transformação da
sociedade e a instauração de um sistema de mercado” (Polany, 2012, p. 280), o
instrumento para racionalizar os efeitos brutais da Revolução Industrial, como
se fossem consequências necessárias de um processo natural, desempenhando um
papel fundamental no levantamento de barreiras morais e de resistências
sociais.
Sem menosprezar o impacto da movimentação monetária na Grécia do século IV
a.C., a
economia no tempo de Aristóteles ainda
estava muito longe desta “grande transformação” numa estrutura de mercado, que só viria a
acontecer muitos séculos depois, como acabámos de ver. Mas, já por esta altura Aristóteles
estava ciente, e preocupado, com o espaço que o fenómeno da economia, ou
melhor, daquilo a que chamava “crematística”
começava a ocupar no mundo grego, influenciando valores éticos, políticos e
culturais em geral na comunidade, mesmo que a sua polis, por essa
altura, já fosse uma parte constituinte do império de Alexandre Magno, de quem,
aliás, foi tutor. A intensificação das trocas, com recurso à moeda, representava
um ambiente propício à deturpação das finalidades da oikonomia e aos desvios ético-políticos, tendo por isso merecido a
atenção de Aristóteles. Enquanto o dinheiro servir apenas como medida de troca,
os efeitos desagregadores da sua ação sobre a polis ficarão limitados. O problema é que, como Aristóteles bem
compreendia, não existe qualquer garantia de que o dinheiro fique subordinado à
finalidade.
Embora não pudesse conhecer exatamente
em que medida, Aristóteles, na “indicação mais profética que alguma vez nos deu o domínio das
ciências sociais”, pressentia que os propósitos originais
da troca poderiam ser descaracterizados ao ponto do dinheiro transformar a polis numa distopia desagregadora.
Seria a partir do século XIX, com o avanço nocivo e destrutivo do capitalismo, que “a
sociedade humana poderia ter sido aniquilada se não interviessem os
contramovimentos defensivos que refrearam a ação do mecanismo autodestrutivo.”[16]
Graeber analisou a perda de vínculos sociais pela intrusão de
uma outra força, a do poder central e impessoal do Estado que, através da usura
ou da cobrança de impostos, fez emergir a dívida, que viria a atingir uma parte
significativa da sociedade antiga; Polanyi, por sua vez, analisou o problema da
devastação da sociedade humana pelas forças intrusivas do mercado, recorrendo,
designadamente, a um conceito vindo do mundo antigo de Aristóteles, o conceito
de crematística, a troca orientada
para o lucro, ambas extraordinariamente relevante para o problema da dívida.
Ainda que não diretamente relacionado com a questão da dívida, o
conceito polanyiano de “mercadorias
fictícias” é especialmente relevante numa união monetária, como a da União
Europeia, um exemplo contemporâneo do poder da distopia do projeto (neo)liberal
no que diz respeito sobretudo à mercadoria-homem e à mercadoria-dinheiro. A
uniformidade de mercado na zona euro criou uma moeda (mercadoria) fora de um
Estado previamente existente e desligada das finanças estatais, que atua por
ação das forças de mercado e que é gerida por instituições supranacionais sem
qualquer controlo democrático, acreditando-se que os seus efeitos produziriam
uma maior convergência socioeconómica e política. Mas, um dos efeitos mais
visíveis da moeda-mercadoria da união monetária acaba por ser aquele que exerce
sobre outra “mercadoria”, o trabalho: o elemento fundamental dos ajustamentos recessivos de todas as
“tróicas”.
Hoje, com um sistema
económico orientado para o lucro - um verdadeiro sistema crematístico mundial -
e com a existência de poderes centrais, independentes do poder político
representativo, como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, o Banco
Central Europeu ou mesmo as agências de rating,
entre outros, estão reunidas as condições institucionais, salvo “contramovimentos
defensivos”, para o controlo da sociedade humana pelo mercado e com ele para a
contínua acumulação de dívida para quase todos e de rendimentos apenas para
alguns.
Aristóteles pressentia a
distopia arrasadora. Estava certo.
Este e outos textos em:
[1] A análise institucional de Polanyi parece ser a
ferramenta adequada não só para compreender o mundo antigo mas também a
sociedade medieval, designadamente para nos conduzir na tarefa de “mostrar
homens - os usurários - no agregado de relações sociais, de práticas e de
valores em que o fenómeno económico da usura estava inserido”, tarefa que
constitui segundo Le Goff, a ambição da sua obra A bolsa e a vida (Le Goff, 1987, p. 16).
Segundo Le Goff “o único historiador e teórico
moderno da economia que nos pode ajudar a compreender o funcionamento do
"económico" na sociedade medieval parece ser Karl Polanyi” (Le Goff,
1987, p. 15).
[2] Apesar
dessa dificuldade, Polanyi localiza um dos primeiros mercados de cidade, se não
mesmo o primeiro, na ágora em Atenas. Por volta do final do século IV, Atenas
era famosa pela sua ágora comercial, onde qualquer pessoa podia comprar
alimentação barata e onde o uso da moeda tinha-se espalhado. Fora de Atenas os
hábitos de mercado não eram muito populares. (Polanyi, 1957, p. 83-84)
Mas, apesar do seu enorme desenvolvimento
comercial, todo o período greco, e romano, não representaram uma rutura na sua
forma institucional, mantendo-se no quadro de uma economia doméstica.
Inclusivamente, “até ao final da época feudal na Europa Ocidental,
os mercados não desempenharam um papel importante no interior do sistema
económico, dado o primado de outros modelos institucionais. A partir do século
XVI, os mercados tornaram-se numerosos e mais importantes (…) embora não
houvesse sinal algum de que viriam a pôr sob o seu controlo a sociedade
humana.” Só no
século XIX, ocorreu uma súbita transição para um tipo de economia inteiramente
novo. (Polanyi, 2012, p. 191-192)
[3] A
“família é uma comunidade (“koinonía”)
formada de acordo com a natureza para satisfazer as necessidades quotidianas
(…). Por outro lado, a aldeia é a primeira comunidade formada por várias
famílias para satisfação de carências além das necessidades diárias. (…) A
cidade (“polis”), enfim, é uma
comunidade completa, formada a partir de várias aldeias e que, por assim dizer,
atinge o máximo de autossuficiência. Formada a princípio para preservar a vida,
a cidade subsiste para assegurar a vida boa. É por isso que toda a cidade
existe por natureza, se as comunidades primeiras assim o foram.” (Aristóteles,
1998, 1252b)
[4] O
“senhor da casa” (“oikonomikon”) é o
homem que “governa várias pessoas”, por comparação com o “rei” (“basilikón”) que “governa ainda mais” ou
com o “senhor dos escravos (“despótê”)
que “governa pouca gente”. (Aristóteles, 1998, 1252a)
[5] Como veremos mais adiante, a “administração doméstica” é uma das quatro estruturas de integração económica (juntamente com a “reciprocidade”, a “redistribuição” e o “intercâmbio/ mercado”). Esta forma assenta numa estrutura institucional de autarcia (a capacidade de subsistir sem qualquer dependência relativamente a recursos externos) e adota como princípio de comportamento a produção para uso próprio. “Foi este o conjunto de condições que, há mais de dois mil anos, Aristóteles tentou transformar em modelo normativo.” (Polanyi, 2012, p. 189)
[6] No
encontro civilizatório narrado por Pero Vaz de Caminha, num espaço inteiramente
marcado pela diferença e pelo estranho, por onde não havia sequer “fala nem
entendimento que aproveitasse”, encontramos exatamente a enunciação deste
problema, o da (in)existência de qualquer medida comum que pudesse servir de
moeda de troca entre os navegantes e os indígenas. Num toma-lá-dá-cá sem qualquer padrão, trocavam-se
“barretes vermelhos”, “carapuças de linho” ou “sombreiros pretos” por “arcos e
setas”, “papagaios vermelhos” ou “panos de penas de muitas cores”. Estas
tentativas de troca reciproca, inventariadas por Caminha, quase como um
antropólogo em missão, marcaram o contacto originário entre aqueles dois mundos
não comunicantes.
[7] “O génio de Aristóteles brilha precisamente
pelo facto de ele descobrir na expressão de valor das mercadorias uma relação
de igualdade. Só a limitação histórica da sociedade em que viveu o impede de
descobrir em que consiste afinal «na verdade» esta relação de igualdade.”
(Marx, 1990, p. 74) De facto, o seu grande mérito foi ter
compreendido a importância de procurar a unidade de coisas ontologicamente
diferentes para que se efetivasse a troca, bem como as suas respetivas
consequências sociais. Inevitavelmente, o contexto económico-político no qual a
questão foi levantada, determina substancialmente o alcance, e os limites, da
sua resposta.
Assim, embora Aristóteles se
tivesse encaminhado em direção a destapar o véu que cobre o fundamento do
valor, nem intuitivamente lhe teria sido possível pensar o trabalho abstrato como a fonte do valor, o que só viria a acontecer
no pensamento de Marx.
Na Grécia antiga, o trabalho
representava algo ligado às atividades e habilidades individuais, onde cada
profissional (o sapateiro, o médico, o arquitecto, etc.) procurava exercer as
suas múltiplas tarefas com o objetivo de produzir algo que fosse capaz de
satisfazer uma necessidade específica na comunidade. Nestas sociedades, não
estavam, portanto, reunidas as condições para que surgisse algo sequer parecido
com o conceito de “trabalho abstrato”,
uma forma de trabalho sem especificação de qualquer uso e cuja finalidade seria somente o aumento da riqueza.
Tal conceção do trabalho humano impediu
Aristóteles de reconhecê-lo como fundamento do valor, o que só outras condições
e processos de produção poderiam vir a revelar, como aquelas em que Marx viveu
e para quem o padrão de comensurabilidade seria,
então, precisamente o “trabalho abstrato”, mera quantidade cujo “uso” é irrelevante: “Um valor de uso ou
bem, apenas tem um valor porque nele está objetivado ou materializado trabalho
humano em abstrato.” (Marx, 1990, p. 49)
[8] “A circulação simples de mercadorias – a venda para a compra – serve de meio para um fim último que se encontra fora da circulação, a apropriação de valores de uso, a satisfação de necessidades. A circulação do dinheiro como capital é, pelo contrário, uma finalidade em si mesma, já que a valorização do valor só existe dentro deste movimento sempre renovado.” (Marx, 1990, p. 177). E é precisamente depois desta passagem do Capital que Marx insere uma nota sobre o conceito de crematística em Aristóteles.
[9] Apesar da referência às formas esquemáticas
apresentadas por Marx, naturalmente que Aristóteles, em virtude do seu contexto
histórico, não poderia reconhecer uma das funções do dinheiro, como “capital”, o que só poderia surgir numa formação
socioeconómica com outro modo de produção. Evitando o anacronismo, refira-se que o
conceito de “capital” não é aqui entendido no sentido
que Marx lhe atribuiu, mas apenas como uma determinada quantia de dinheiro a
ser investida para proporcionar um rendimento futuro.
[10] No
livro IV da Ética a Nicómaco, Aristóteles analisa os vários modos de
“dar e receber riquezas”, entendendo, por riqueza “todas aquelas coisas cujo
valor pode ser avaliado em dinheiro” (Aristóteles, 2004, 1119b, p. 84).
Consoante o grau de apego às posses materiais, é definido o tipo de conduta
moral. Surgem então o generoso, o esbanjador, o avaro, o pródigo, o ganancioso,
o mesquinho, e, é claro, o usurário, com o seguinte perfil moral: ”Quem, por
outro lado, gosta de receber em demasia, procura fazê-lo em toda a parte e a
respeito de qualquer atividade humana. É por isso que têm uma natureza avara os
donos de bordéis bem como os usurários que emprestam pequenas quantidades de
dinheiro em troca de juros altíssimos. Todos os que são deste género recebem de
todo o lado de onde não devem, e na quantidade que não devem. A caraterística
comum do lucro que todos estes obtêm é ser vergonhoso. Todos eles suportam bem
uma repreensão, por causa de um ganho, mesmo de um ganho insignificante.”
(Aristóteles, 2004, 1121b)
[11] “O
dinheiro é estéril. Ora, a usura queria fazer com que ele frutificasse. Tomás
de Aquino diz, após ter lido Aristóteles: "Nummus non parit nummos (O
dinheiro não se reproduz)". "A moeda (...) foi principalmente
inventada para as trocas. Por consequência, é injusto em si receber uma
recompensa pelo uso do dinheiro emprestado; é nisso que consiste a usura.”” (Le Goff, 1987, p. 26)
[12] “O roubo
usurário é um pecado contra a justiça. Tomás de Aquino diz: "É
pecado receber dinheiro como recompensa pelo dinheiro emprestado, receber uma
usura?". Resposta: "Receber uma usura pelo dinheiro emprestado é em
si injusto: pois vende-se o que não existe, instaurando com isso
manifestamente uma desigualdade contrária à justiça.” (Le Goff, 1987, p. 24)
[13] “Falar
de justiça natural (…) é um
contrassenso”. É justo o que corresponder a um modo de produção, que lhe seja
adequado e injusto, assim que o contradisser. “A justiça das transações que se
efetuam entre os agentes da produção baseia-se na circunstância de se
originarem das relações de produção como consequência natural. As formas
jurídicas em que essas transações económicas aparecem como atos de vontade dos
participantes, como expressões de sua vontade comum e como contratos cuja
execução pode ser imposta à parte individual por meio do Estado não podem, como
simples formas, determinar esse conteúdo. Elas apenas o expressam.” (Marx,
1986, p. 256)
[14] As
outras três formas, ou sistemas económicos, identificadas e caraterizadas por
Polanyi são a reciprocidade, a redistribuição e a administração doméstica. As suas estruturas institucionais são a simetria, a centralidade e a autarcia
e os princípios de comportamento, a dádiva/contra-dádiva, a entrega de bens a
um centro de autoridade e a produção para uso próprio, respetivamente.
(Polaniy, 2012, Capítulo IV)
[15]
Através da recuperação de elementos históricos e antropológicos, Polanyi
analisa a grande transformação que
começou a sua trajetória na Revolução Industrial e atingiu o auge no século
XIX. Mais exatamente, a transformação iniciou-se
em Inglaterra em 1830, com o “nascimento do credo liberal” e conclui-se por
volta dos anos 20 do século XX. Neste período de tempo a Inglaterra sofre uma
experiência de desestruturação social e humana sem qualquer precedente na história
ao criar, pela primeira vez, uma forma de produzir e distribuir o “sustento
humano” regulada exclusivamente pelo mercado.
[16] De
acordo com Polanyi, à medida que o capitalismo se desenvolvia, era acompanhado
por um movimento paralelo de proteção para fazer face aos seus excessos e à
distopia de um mercado autorregulado. Neste sentido: “a história social do século XIX foi
assim o resultado de um duplo movimento: a extensão da organização do mercado
no que se referia às verdadeiras mercadorias foi acompanhada por restrições
relativas às mercadorias fictícias. (… ) irrompeu a partir de um nível profundo
um movimento de resistência aos efeitos funestos de uma economia controlada
pelo mercado. A sociedade protegia-se contra os perigos inerentes a um sistema
de mercado autorregulado” (Polanyi, 2012, p. 220)
Muito bom!
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